Análise: Com potencial e efeitos, 'O Sequestro do Voo 375' traz 'quase-atentado' real ao Planalto

Em 1988, desempregado sequestrou o avião da Vasp que ia de Rondônia ao Rio de Janeiro para tentar derrubá-lo em Brasília, matando o presidente

15 out 2023 - 17h10
(atualizado em 17/10/2023 às 12h56)

RIO - Em 1988, quando ocorreu o episódio do sequestro do voo 375, Marcus Baldini tinha 14 anos. "Não lembro de ter acompanhado pela TV a cobertura do caso, mas me lembro bem do Brasil da época. As Diretas Já, a redemocratização, a morte de Tancredo Neves e a presidência de José Sarney, a esperança e o desapontamento produzido pelo fracasso dos planos econômicos." Baldini trouxe tudo isso, o que chama de métrica das produções de gênero, e o fundo político, para seu longa O Sequestro do Voo 375, que encerrou o 25º Festival do Rio no sábado, 14.

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No domingo, 15, o Festival realiza a premiação. Quem levará o troféu Redentor? No dia 29, Voo 375 terá exibição na Mostra de São Paulo. Em 7 de dezembro chegará às salas de cinema. Para muita gente será uma dupla surpresa. O público jovem talvez nem saiba que isso ocorreu no Brasil. Também vai se surpreender com a qualidade. E não é que o cinema brasileiro consegue fazer filmes catástrofes, com muitos efeitos, e gastando menos?

Tem mais - em julho de 2019, há quatro anos, Jair Bolsonaro estava presidente há apenas seis meses, mas já havia iniciado sua cruzada contra o cinema brasileiro. Bolsonaro elegeu Bruna Surfistinha como paradigma. Seria indecente fazer filmes como o de Marcus Baldini com Deborah Secco com dinheiro público. Bolsonaro não foi reeleito, o Brasil vive outro momento.

Em 1970, George Seaton iniciou a série Aeroporto. Mais recentemente, Robert Zemeckis fez Decisão de Risco/The Flight, em 2012, e Clint Eastwood dirigiu O Milagre do Rio Hudson, em 2016. No Brasil houve tentativas como Joelma, 13º andar, de Clery Cunha, de 1979, que reconstitui o incêndio do edifício no Centro de São Paulo. Se Joelma, 13º Andar se inscrevia na vertente de Inferno na Torre, de 1974, com Steve McQueen e Paul Newman, O Sequestro do Voo 375 percorre agora a de Aeroporto e seus derivados.

Baldini viu todos aqueles mamutes de Hollywood. Queria entender os códigos narrativos, as convenções, para recriá-las - "Gosto de levar público aos cinemas" -, mas com o diferencial, já assinalado, de fazer uma sólida leitura política do período em que ocorreram os fatos. Poderia citar também Voo United 93, de Paul Greengrass. Não por acaso, informa o letreiro final, o sequestro do voo 375 estava detalhado nos arquivos de Osama Bin Laden. Teria sido uma das fontes de inspiração para o 11 de setembro.

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Pesquisa e detalhes

O filme começou a nascer com uma pesquisa iniciada há 11 anos pelo argumentista e coprodutor, Constâncio Viana e logo depois foi apresentado para a produtora Joana Henning, do Estúdio Escarlate. Há sete anos foi dado o start para o início da produção. Em 2018, Baldini estava dentro. Ele é produtor e diretor, Joana é produtora com envolvimento autoral e artístico. Formaram o casamento perfeito. Ela conta as dificuldades da produção - "Filmamos nos estúdios da Vera Cruz, utilizando aviões de verdade, e não apenas cenográficos." A Vasp, Viação Aérea São Paulo, deixou de operar em 2005 e teve sua falência decretada três anos mais tarde. No final dos anos 1980, era uma das gigantes da aviação comercial brasileira. Joana percorreu o Brasil procurando carcaças de aviões. Várias aeronaves, incluindo da Vasp, foram adquiridas por colecionadores, após o fechamento da empresa. Joana conseguiu comprar - em consignação - três aviões e montar dois. "Descobri locais que vendiam talheres de bordo, até o papel higiênico com o timbre da Vasp."

Houve grande cuidado com os detalhes, e não apenas. A Aeronáutica brasileira contribuiu para garantir a autenticidade dos termos e protocolos. "Foram solidários, não censores", resume Joana. Ela foi a Los Angeles e teve todo apoio da Air Hollywood, uma empresa especializada em viabilizar sequências aéreas para produções de audiovisual. Diversas - pelo menos três - traquitanas tiveram de ser montadas para criar algumas das cenas mais impressionantes do filme. O giro do avião, e a inversão com os passageiros de cabeça para baixo, que Zemeckis já utilizou em The Flight. O avião em queda livre, na vertical. Tudo isso exige técnica, e dinheiro. "O filme custou mais que a média da produção nacional, e ainda assim foi um orçamento baixo para os padrões internacionais. Precisamos repensar a questão do orçamento, se quisermos ser competitivos no mercado internacional, produzindo filmes de qualidade", diz Joana.

As traquitanas funcionaram, mas Joana lembra - "Apesar do testemunho de mais de uma centena de passageiros, a Boeing sempre contestou que o piloto tenha feito aquelas manobras arriscadas. Segundo a companhia, o avião não teria aguentado." O filme cria duas personagens femininas fortes - a chefe de cabine, interpretada por Juliana Alves, e a controladora de voo, Roberta Gualda. Na realidade, era um controlador, um homem, que Joana conseguiu transformar em mulher. "Não é possível fazermos um filme grande assim sem atentar a questões de gênero que são decisivas na contemporaneidade." E, depois, "ainda não havia mulheres no Exército, mas civis eram admitidas nas escolas de controladoria." Tudo isso, a técnica como a dramaturgia, é para tentar explicar como O Sequestro do Voo 375 foi produzido para ser competitivo no próprio mercado brasileiro, formatado para a produção estrangeira, de Hollywood.

O discurso do diretor

Baldini reconhece que houve toda uma preocupação, não apenas com o funcionamento da aeronave e a dinâmica do voo, mas também com a construção dramatúrgica do quadro político. O Brasil pré-Constituinte. Os resquícios da ditadura cívico-militar. O militar que controla o tráfego aéreo, invocando a pátria, quer a autorização do presidente para derrubar o avião. O que são 100 civis indefesos face à segurança nacional? Os (policiais) federais parecem mais humanos, mas são atrapalhados demais para ser heróis dessa história. Sobram o piloto, Murilo, interpretado por Danilo Grandheia, e as mulheres, a aeromoça e a negociadora.

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Murilo, ligado ao sindicato da categoria, sente-se injustiçado pela companhia. Ele entende o desespero de Nonato/Jorge Paz, mas seu compromisso é com a tripulação e os passageiros. Como herói que foi - morreu em 2020 -, Murilo, o brasileiro sindicalizado fará tudo para que o voo chegue a bom termo. Ninguém é superconhecido, embora o espectador já tenha visto esses rostos. Atores e atrizes servem aos personagens, à dramaturgia.

É um momento difícil - decisivo? - para o cinema brasileiro, que precisa motivar o público a voltar às salas. A cota de tela é essencial, mas também o preço do ingresso. Não adianta o filme ser popular, se o entorno não for. Bolsonaro hostilizou tanto Baldini, por causa de Bruna Surfistinha, que se poderia agora fazer uma campanha. Ver O Sequestro do Voo 375 como uma tomada de posição, de apoio à resiliência do cinema nacional. Também para entender o Brasil de 35 anos atrás e seus resquícios na atualidade. Se há um filme com potencial para fazer 1 milhão de espectadores, é esse.

Set de filmagem do filme 'O Sequestro do Voo 375' no Estúdio Vera Cruz em dezembro de 2022
Set de filmagem do filme 'O Sequestro do Voo 375' no Estúdio Vera Cruz em dezembro de 2022
Foto: Taba Benedicto/Estadão / Estadão
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