Entre meados do século 19 e a Segunda Guerra Mundial, mulheres do Leste Europeu, muitas delas judias fugindo do antissemitismo crescente e da violência na Europa, foram enganadas e trazidas para o Brasil e outros países da América do Sul para exploração sexual. Sua presença era comentada à boca pequena. Sua história de resiliência, apagada. O filme As Polacas, dirigido por João Jardim, estreia nesta quinta-feira, 12, com a vontade de resgatar a existência e a resistência dessas mulheres.
"Durante muito tempo, a comunidade judaica tinha muito medo dessa história porque, de alguma forma, as pessoas tinham relação com antigas polacas - mesmo que não fosse direta, mas sabiam os nomes", disse o diretor em entrevista ao Estadão. "Foi uma história apagada. O Brasil sempre foi um país muito conservador, então nunca levavam em consideração as circunstâncias em que tudo aconteceu. Mas essas mulheres sempre foram muito resistentes. É uma história importante de contar, não só pelo Brasil, mas pela sororidade dessas mulheres." Elas fundaram a Sociedade da Verdade, uma associação das prostitutas judias que defendia essas mulheres e garantia que fossem sepultadas de maneira digna.
No filme, a atriz Valentina Herszage interpreta Rebeca, uma mulher polonesa que foge do crescente antissemitismo na Europa, que atingiria seu auge nos anos seguintes, além da pobreza e da violência da Primeira Guerra Mundial. Com seu filho, o pequeno Yosef (Rafael Fuchs), ela desembarca no Rio de Janeiro para reencontrar seu marido. Ao chegar, descobre que ele morreu repentinamente e acaba sendo forçada ao trabalho sexual por uma rede de prostituição e tráfico de mulheres liderada por Tzvi (Caco Ciocler).
"Eu me interesso muito por filmes que resgatam a história do nosso País. Neste ano, é meu terceiro drama histórico, sobre algo que aconteceu e se repete até hoje", contou a atriz, que também faz a Vera de Ainda Estou Aqui. Em sua opinião, a função do cinema é justamente pessoalizar. "Trazer nomes, desejos, como eram as famílias. Quais eram seus sonhos? É tão importante falar de mulher e sonho, porque muitas vezes as mulheres sonhavam e não podiam fazer nada com aquilo. Espero que a gente possa também celebrar o pouco que a gente já caminhou. Em Ainda Estou Aqui, a gente também pega uma família, mostra o dia a dia e faz com que seja mais fluido se identificar."
A atriz não escondeu a felicidade com o sucesso do filme de Walter Salles, que concorre a dois Globos de Ouro, de melhor produção internacional e atriz de drama (Fernanda Torres). "Estou em festa. Espero que leve as pessoas para essa retomada dos cinemas. Ter 2 milhões de espectadores em duas semanas é uma alegria imensa. É um filme que eu amo de paixão. Eu sempre fui fã do Walter, e essa minha parceria com ele e com a Fernanda (Torres) foi das mais especiais da minha vida. É um filme muito afetuoso, e acho que ele chegou nas pessoas também assim."
Motivação familiar
Ela também tinha uma razão pessoal para aceitar fazer o papel. "Os meus bisavós vieram da Polônia depois da Primeira Guerra, ali no início do século 20. É uma história que fala da minha origem, dos meus antepassados. A minha família está muito feliz, porque é uma celebração da cultura judaica, da religiosidade em geral. Da música, da reza, da oração."
Para o diretor João Jardim, é importante resgatar as mulheres esquecidas pela história. "Durante muito tempo no universo das narrativas, só interessavam as narrativas dos homens, os heróis. Das mulheres, ninguém nem ouvia falar. Hoje em dia tem um resgate porque houve muitas mulheres importantes. Temos de mostrar que todas as pessoas têm histórias relevantes e até heroicas para serem contadas."
Sendo um homem dirigindo As Polacas, com um roteiro de Jacqueline Vargas e Flávio Araújo e roteiro final de George Moura, ele sabia que precisava tomar cuidados, mesmo tendo se interessado por questões de gênero, por exemplo, em trabalhos anteriores. "Eu acho que um homem pode ter um ponto de vista muito crítico em relação à posição dos outros homens", disse Jardim. "Lugar de fala é uma coisa a ser respeitada. Mas eu acho muito interessante quando um homem com sensibilidade e histórico, que não está se aproveitando do tema, vem para fazer parte."
Ele teve cuidados, recrutando mulheres em posições-chave, como a direção de fotografia, assinada por Louise Botkay. Em um filme que trata de exploração e violência sexual, a abordagem precisava ser cautelosa. "A primeira coisa era não tornar o corpo da mulher um fetiche. Deixar claro que a gente não está falando de prazer e sim de um lugar em que havia dor", disse o cineasta. "A gente chega muito perto dos personagens para entender quanto essa violência impacta essas mulheres. Mas queria que fosse um filme emocionante e belo. A arte usa a beleza para sublinhar o horror."
Valentina Herszage e as outras atrizes tiveram preparação de elenco com Eduardo Milewicz e a ajuda da coordenadora de intimidade Maria Silvia para cenas mais delicadas. "Foi tudo muito cuidadoso", afirmou a atriz.
Para ela, era fundamental mostrar a união das mulheres passando por aqueles horrores. "A Rebeca começa a vencer quando ela se alia às outras", disse Valentina Herszage. "É bom que a gente esteja construindo novas histórias com olhar diferenciado, que estimule as mulheres. Às vezes você está passando por uma coisa que a mulher do seu lado também está, e você se fortalece se compartilha isso com ela."
O diretor João Jardim sempre viu as polacas como guerreiras e não como vítimas. Zvi, por sua vez, faz maldades com naturalidade, sem afetação. "É isso o que acontece e que as pessoas precisam enxergar. Esses homens têm o dom de envolver, criando uma lógica própria que convence. O roteiro mostra o absurdo do raciocínio desse homem usurpador."