Filha de piloto morto no voo 375 superou medo de voar, virou psicóloga e trata pessoas com aerofobia

Wendy Evangelista conta ao 'Estadão' história que começa com assassinato do pai em tentativa de atentado terrorista em 1988. Ao superar pânico de aviões, ela se especializou e hoje ajuda pessoas com este medo

16 dez 2023 - 09h11
(atualizado em 8/2/2024 às 14h50)
Imagem do filme "O Sequestro do Voo 375"
Imagem do filme "O Sequestro do Voo 375"
Foto: Divulgação

A psicóloga especialista em aerofobia Wendy Evangelista tem o desenho de um avião tatuado no antebraço para simbolizar a sua relação com a aviação. Com fobia de voar, a profissional da saúde entrou para o ramo após viver traumas na infância e ficar 10 anos longe de viagens de avião.

O nome de Wendy foi escolhido pelo pai, Salvador Evangelista, um piloto apaixonado por aviões, música e pela filha. Ele foi brutalmente assassinado enquanto trabalhava como copiloto do voo 375, da companhia aérea Vasp, em 1988. A filha contou ao Estadão que ele não estava escalado para aquele dia, mas adiantou o trabalho para participar de seu aniversário de 8 anos.

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Salvador, no entanto, entrou na aeronave que Raimundo Nonato planejou sequestrar. Insatisfeito com a economia do País, ele tinha o objetivo de jogar o avião 375 da Vasp no Palácio do Planalto e matar o então Presidente do Brasil, José Sarney — além das 100 pessoas a bordo. A história é contada no novo filme O Sequestro do Voo 375, dirigido por Marcus Baldini, de Bruna Surfistinha e O Rei da TV, com produção de Joana Henning e Constâncio Viana, em cartaz nos cinemas brasileiros desde 7 de dezembro.

A trama baseada em fatos mostra o comandante Fernando Murilo salvando os passageiros, a tripulação e a si próprio. Ele realiza manobras arriscadas para tentar desarmar o sequestrador e evitar uma tragédia maior. A história heroica não teve um final exatamente feliz, já que Salvador Evangelista tomou um tiro na região da nuca e morreu na hora, aos 34 anos, deixando Wendy, sua única filha.

O assassinato de Salvador foi apenas o primeiro de uma sequência de traumas de Wendy com aviões. Em 1989, um ano depois da morte do piloto, o padrasto de Wendy morreu na queda de um voo de pequeno porte. Em 1994, a psicóloga teve que acompanhar o transporte do corpo da irmã em um avião após ela morrer em um acidente de carro.

As tragédias fizeram com que Wendy se esquecesse da paixão com a qual seu pai a apresentou para a aviação e desenvolvesse fobia de aeronaves — a ponto de não poder pisar em um aeroporto sem ter um ataque de pânico. "O avião era a extensão da minha casa", relembra ela sobre a infância, quando viajava tanto na cabine com o pai que chegou a estar matriculada em duas escolas ao mesmo tempo, em diferentes estados.

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A psicóloga não entende como, mas tem fortes memórias da época na qual viveu com Salvador viajando por aí até os sete anos, idade que tinha quando ele morreu. Ela se recorda até dos hotéis onde se hospedavam e de brincar com os filhos dos tripulantes, mas não sabia se essas lembranças eram reais ou inventadas. Conversando com a tripulação de seu pai, descobriu que sua memória ia mais longe do que imaginava. Agora, ela quer lembrar dele em vida.

"Meu pai colocava a vida em cada dia que tinha. Ele não era só apaixonado por aviação, por música e por ser pai. Ele era apaixonado pela vida. É como se ele soubesse que teria pouco tempo", comenta Wendy, emocionada, ao Estadão.

'Fernando Murilo achou que eu estava morta'

Salvador também era próximo de Fernando Murilo, que pilotava o voo 375 da Vasp e realizou manobras jamais vistas para uma aeronave comercial. Uma das memórias de Wendy era de visitar a família do piloto e receber o apelido carinhoso de "pirralha" do filho do comandante.

A psicóloga também tem uma foto no colo de Murilo quando ele recebeu uma medalha de condecoração pelos feitos no voo 375 da Vasp. Mas, por muito tempo, Murilo achou que Wendy tivesse morrido em um acidente de carro que, na realidade, matou sua irmã e o filho de seu padrasto.

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Como Murilo não sabia que a psicóloga tinha uma meia-irmã por parte de mãe, acreditou que era Wendy quem tinha morrido naquele acidente. "Ele achou que eu estivesse morta", relembra.

O piloto só descobriu que Wendy estava viva anos depois, quando a psicóloga encontrou uma foto dos dois no livro do Ivan Sant'Anna, Caixa Preta, de 2000, sobre o voo e tentou contato com Murilo. Quando eles se viram novamente, Murilo chorou como uma criança.

Superação do medo

Mãe de três, Wendy enfrentou o medo de avião para viajar com os filhos. Quando o caçula, Rafael, imitou o comandante após ele falar com os passageiros em um voo, a psicóloga teve certeza de que queria superar sua fobia.

"Quando meu filho era pequenininho e mal falava direito, ele ficou em pé quando o comandante falou com a aeronave [e respondeu]: 'Sim, senhor capitão!'. Nossa! Ele achou o máximo estar ali dentro. Então, eu percebi que não dava para eu continuar daquele jeito", contou ela.

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Wendy procurou ajuda especializada, mas não encontrou ninguém. O canal no YouTube Aviões e Músicas, que explica o funcionamento de aeronaves e desastres aéreos, a auxiliou nesse processo. Ela seguiu estudando até que se tornou psicóloga especializada em aerofobia. Hoje, a filha de Salvador ressignificou o trauma atendendo pacientes que também sofrem com medo de avião.

O tratamento é semanal e permite que, na hora de viajar de avião, o paciente escolha se quer ou não a companhia de Wendy. Uma das pessoas que quis a psicóloga como acompanhante em um voo foi a empresária Aline Moreno, de 42 anos.

O Estadão conversou com Aline, que ficou 14 anos sem entrar em um avião e já até perdeu oportunidades profissionais devido à fobia. Ela nunca entendeu seu receio de aeronaves, mas sentiu medo do transporte desde a primeira vez na qual entrou em um.

"Vim travada no avião. Colada na cadeira e fazendo oração durante todo o projeto", disse ela. "A Wendy me mostrou que meu medo não era só avião. Tinham outros fatores, como a ansiedade envolvida, que também resultavam nesse pânico de voar".

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Aline já chegou a pagar por viagens e desistir na hora de ir ao aeroporto, perdendo dinheiro. "Hoje eu já consigo pesquisar lugares aos quais eu tenho vontade de ir, fico olhando passagem aérea e aviões, foi uma mudança surreal", comenta Aline sobre o tratamento.

A médica Bruna da Fonseca, de 39 anos, também sempre teve muito medo de voar e, para não perder oportunidade de viajar com a família para os Estados Unidos, contratou os serviços de Wendy. Com o tratamento dois meses antes da viagem, ela contou ao Estadão que conseguiu sair da crise de pânico.

"Como a Wendy passou por essa experiência no passado e pela história de vida, ela conseguia me compreender e entender minhas angústias, pois o medo em saber do voo me deixava até com sintomas físicos", diz Bruna à reportagem.

Com o tratamento, a médica conta que percebeu o que no avião lhe causava medo. "Ela me mostrou que o avião é o meio de transporte mais seguro, que turbulência não derruba avião. (...) Ela também me ensinou a questão da fisiologia, sobre como o corpo humano reage na crise de ansiedade em voar e como fazer que o medo não paralise".

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O processo de superação do trauma, diz Wendy, não é linear — acreditar que sim é "uma ótima forma de fugir". "Se eu dormi mal, se eu já estou ansioso naquela semana, se as coisas foram difíceis, não adianta eu querer estar bem no avião que já não é um lugar confortável", finaliza a psicóloga.

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