'Indenização não traz justiça', diz diretor de 'O Ninho', doc sobre incêndio no CT do Flamengo

Em entrevista ao Terra, Pedro Asbeg fala de responsabilidade e dor ao conduzir documentário sobre incêndio que matou 10 jovens no CT do Fla.

14 mar 2024 - 05h00
'O Ninho: Futebol & Tragédia' revela tragédia anunciada em incêndio no CT do Flamengo
'O Ninho: Futebol & Tragédia' revela tragédia anunciada em incêndio no CT do Flamengo
Foto: Divulgação/Netflix

Era 8 de fevereiro de 2019 quando o Brasil acordava com uma triste notícia: um incêndio no Ninho do Urubu, centro de treinamento do Flamengo no Rio de Janeiro, deixou 10 mortos, todos garotos entre 14 e 16 anos de times de base do clube. O fogo, que começou enquanto os garotos dormiam em um alojamento de contêiner, se espalhou rapidamente após um curto-circuito em um aparelho de ar condicionado. 

Cinco anos depois, um documentário em três episódios chega à Netflix para dar uma nova luz ao caso. Sob o comando de Pedro Asbeg, a série 'O Ninho: Futebol e Tragédia' traz entrevistas com sobreviventes do incêndio e familiares de vítimas, para falar sobre os impactos causados pela tragédia e transmitir a real dimensão de tudo o que aconteceu.

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A missão, no entanto, é maior: nomear os responsáveis que ignoraram os riscos de segurança do contêiner e deram espaço para que o acidente acontecesse.

Mas como fazer isso de forma cuidadosa? "Desde o primeiro minuto falamos que precisávamos humanizar a tragédia e dar um nome e um rosto a essas pessoas", explica Pedro em entrevista ao Terra, relembrando o processo de montagem dos episódios e as escolhas do que mostrar e como mostrar. 

"Só que isso é um processo que leva 3 anos. Algumas escolhas são feitas baseadas no que é interessante para o espectador. Às vezes era necessário ter calma e aproximar o espectador das famílias; depois, destrinchar e entender o processo: 'O que aconteceu?' E assim as coisas foram andando."

A narrativa se desenrola em duas frentes. Em uma delas acompanhamos as histórias dos meninos que morreram no incêndio e suas famílias. Em depoimentos emocionados, mães, pais e familiares recordam a paixão dos filhos pelo futebol e pelo Flamengo, e alguns sobreviventes compartilham os momentos de alegria e descontração entre os treinos. Na outra, sobressai um olhar mais técnico e um tom de denúncia, e o material passeia por investigações que revelaram que o incêndio, no fim das contas, era uma tragédia anunciada diante de irregularidades ignoradas por dirigentes do clube.

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Pedro recorda a abordagem com as famílias e os meninos que treinavam na base do Flamengo, e cita que falar sobre o incêndio e as vítimas é um momento de muita dor. Das 10 famílias cujos filhos morreram, somente um pai preferiu não ser contactado.

"Ele falou: 'Olha, isso é um assunto muito doloroso, e eu prefiro que a gente deixe como está'. Com todas as outras 9 famílias eu conversei pelo menos por telefone, e depois fui escolhendo quais eu iria encontrar pessoalmente."

Já com os jogadores, o processo e a recepção foram diferentes:

"Dos 16 sobreviventes, muitos preferiram não falar, cada um por uma razão; alguns por ainda estarem no Flamengo, outros por entenderem que a vida precisa seguir sem que eles carreguem esse peso de serem sobreviventes da tragédia, e outros por qualquer razão pessoal que não cabe a mim julgar. Dos 16, falei com 10 ou 11."

'O Ninho: Futebol & Tragédia', na Netflix, expõe irregularidades por trás de incêndio no CT do Flamengo
Foto: Divulgação/Netflix

Mas o processo de ir em busca de personagens não ficou apenas nisso, e foi mais desafiador quando chegou a hora de contactar pessoas e empresas diretamente ligadas ao que aconteceu naquele fatídico dia de fevereiro. De prestadores de serviço ao próprio Flamengo, todas ficaram caladas.

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"Presidentes, vice-presidentes, diretores do clube, representantes de empresas... a lista de pessoas que se recusou a participar é grande; empresa fabricante de contêiner, empresa de manutenção de ar-condicionado... mas quero acreditar que isso não diminui o peso do trabalho. Talvez, ao verem o trabalho, alguns se arrependam e vejam que poderiam ter dado suas visões da história. Quando você abre mão de opinar e participar, deixa que os outros tirem suas próprias conclusões da sua ausência." 

Pedro Asbeg, diretor

Sobre o Flamengo, foi uma escolha do documentário não envolver o clube na execução. No entanto, todos os contatos e pedidos por entrevista feitos por Asbeg e sua equipe foram ignorados.

"O Flamengo nunca entrou em contato ou participou do trabalho. A gente entendia que essa série poderia existir sem a concordância do clube, apesar de a gente querer a voz de representantes do Flamengo na série. Em nenhum momento o Flamengo tomou a iniciativa de nos procurar, assim como nós, durante o processo, não o procuramos institucionalmente; depois, claro, fizemos pedidos formais por entrevistas e isso acabou não acontecendo."

'Pessoas sabiam de todos os problemas; pessoas têm que responder' 

'O Ninho: Futebol & Tragédia' revela tragédia anunciada em incêndio no CT do Flamengo
Foto: Divulgação/Netflix

Ao mesmo tempo doloroso e contundente, 'O Ninho' assume com muita sobriedade a tarefa de mostrar a dor e o descaso que rodeiam o atendimento dado às famílias após o incêndio, e não omite críticas ao Flamengo, aos seus dirigentes e a autoridades que poderiam ter evitado a tragédia.

Ele mesmo rubro-negro apaixonado pelo clube, Asbeg faz questão que contrastar a grandiosidade do time, certamente um dos maiores do Brasil, com a estrutura precária do alojamento do time de base na ocasião. Depoimentos de pratas da casa como Zico e Vanderlei Luxemburgo ajudam a compor a ideia.

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"A nossa relação de amor com um time de futebol tem um limite, que são nossas relações pessoais e sentimentos de empatia", enfatiza. "Eu me senti em uma missão. Esse trabalho poderia não ter sido feito por mim, e eu entendi que eu podia, como torcedor do Flamengo, ter um ponto de vista isento e equilibrado, partindo do pressuposto que é um trabalho que vai dar visibilidade a essas famílias e, se tudo der certo, buscar por justiça."

Para ele, o grande recado do documentário é que a responsabilização precisa ir além do Clube de Regatas Flamengo:

"A gente fica só lembrando do Flamengo, e é óbvio porque foi dentro do clube que isso aconteceu. Mas precisamos dar nome aos responsáveis. Pessoas tomaram a decisão de colocar aquele contêiner, pessoas ignoraram as denúncias feitas pela prefeitura, Ministério Público e Corpo de Bombeiros. Pessoas sabiam de todos os problemas elétricos e estruturais do contêiner. Então pessoas têm que responder por isso."

Diretor de documentários como 'América Armada', 'Democracia em Preto e Branco' e 'Lei da Selva - A História do Jogo do Bicho', Asbeg conta que acredita na força do audiovisual para causar impacto, e espera que seu novo lançamento faça diferença na vida de alguém.

"Meu trabalho me dá uma oportunidade rara de falar para muita gente e deixar ali uma semente. Nesse caso em particular, pelo potencial de visibilidade da Netflix, a chance é maior, assim como a responsabilidade. Quero acreditar que esse trabalho vai fazer isso e, quem sabe, gerar alguma mobilização para as pessoas entenderem que esse processo precisa andar."

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O primeiro momento foi 'paguem as famílias'. Das dez, felizmente nove já foram pagas e a última a Justiça decidiu o valor que o Flamengo precisa pagar; então isso já não está mais debatido, mas a gente não pode ficar só nisso. O valor da indenização não é a única coisa que vai trazer justiça, pelo contrário. O que vai trazer justiça é responsabilizar pessoas que de alguma forma causaram aquilo ali."

Pedro Asbeg, diretor

 

Fonte: Redação Entre Telas
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