Inspirada em Marielle, série de 'Cidade de Deus' quer ir além da violência: 'Nos interessa o reflexo'

Ambientada 20 anos após o filme, 'Cidade de Deus: A Luta Não Para' busca olhar para comunidades e enxergar além do tráfico e da guera.

25 ago 2024 - 05h00
(atualizado em 26/8/2024 às 16h32)
Foto: Mais Goiás

Uma chance de ressignificar. Resumidamente, é assim que o elenco de "Cidade de Deus" enxerga a nova série que estreia hoje, 25, dando continuidade ao filme 20 anos após a história. 

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Foi por meio da adaptação de Fernando Meirelles e Katia Lund que o favela movie se tornou um gênero, que o cinema brasileiro se reposicionou no mercado mundial e que as periferias começaram a ser vistas como uma oportunidade para o audiovisual. Tanta visibilidade, é claro, tem seus prós e contras. Por um lado, é imensa a leva de profissionais que ganharam um merecido espaço a partir de filmes como "Cidade de Deus". Por outro, será que realmente a narrativa do tráfico e da violência é a única que pode sair de lugares periféricos?

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Para Roberta Rodrigues, a história é bem diferente. Intérprete de Berenice, namorada de Cabeleira (Jonathan Haagensen) que deixou a Cidade de Deus ainda no início do filme, ela volta em "A Luta Não Para" com uma narrativa que vai na contracorrente disso tudo. Agora, Berê é dona de um salão de beleza e vai mergulhar de cabeça em uma jornada de luta social --algo que foi comparado à trajetória de Marielle Franco, que seria a inspiração para a personagem, conforme noticiado no ano passado pela coluna Play, do jornal O Globo.

"Quando saiu isso, eu fiquei preocupada, porque não é sobre a trajetória da Marielle. A trajetória da Marielle é uma que a gente não queria ter visto", explica a atriz em entrevista ao Terra. "Muitas pessoas falam 'Marielle presente'. Eu falo que não, ela não está aqui. É essa a história que eu estou contando", emociona-se.

"Estou contando a história de uma mulher preta da comunidade que está viva. A gente não pode normalizar dizer que a gente vai virar semente. Na cabeça dos nossos, a gente entende essa semente. Na cabeça de quem controla, é como se fosse: 'Ok, é semente para eles e a gente continua liderando da mesma forma'. A minha história é para contar que a gente viva."

"Eu falei para os meus roteiristas, para diretor, para produtora executiva, que eu me recuso a morrer. Mesmo se vocês escreverem, eu me recuso a fazer essa cena porque a gente tem que contar as histórias que a gente quer ver. Porque eu queria estar vendo a Marielle viva agora, assistindo à nossa série estrear. Mas ela deixou um legado de que a gente tem que estar dentro da política. Só assim a gente consegue fazer o efetivo."

Foto: Divulgação

Assim como Berenice, Barbantinho (Edson Oliveira) é outro que também entra na política. Melhor amigo de Buscapé (Alexandre Rodrigues) no filme, ele agora é um dos líderes comunitários e está entre as pessoas mais queridas da Cidade de Deus. Justamente por isso, é um dos personagens que levam a série para um lugar que vai além da violência e do tráfico.

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"O Barbantinho é o fruto daquela comunidade, e acaba se doando totalmente para fazer uma transformação. Mas é uma transformação que é 'nós para nós, por nós, de nós mesmos'. Sem demagogia nenhuma, porque se não fizermos, ninguém fará por nós", pontua Edson.

"Ele é um cara que faz muito pela comunidade, para ter esse desenvolvimento cultural, mas também percebe que isso não impede a violência de vir de fora para dentro, através da própria política. A única salvação que ele tem para acabar com isso é se envolvendo na política."

O envolvimento de membros da comunidade na política é um elemento novo para a série, assim como a própria ideia de mostrar a atuação comunitária distante da violência, escoltada também por Cinthia (Sabrina Rosa) e Ligia (Eli Ferreira). Para o elenco, é uma oportunidade até mesmo de desmitificar o significado de uma atuação política presente.

"Foi feita uma lavagem cerebral, a gente aprendeu a vida inteira que política era chato, que política e futebol não se discute", pontua Roberta. "São parâmetros totalmente complexos. A história da série, através desses personagens, é mostrar o quão importante é você, enquanto sociedade, se juntar à potência que o outro tem pela síntese, e assim fomentar o desejo de transformações."

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Entre a raiz e o sonho

Fio-condutor da história de "Cidade de Deus: A Luta Não Para", Buscapé é um cara que, segundo seu próprio intérprete, seguiu o sonho até o fim. No filme, ele ganha notoriedade ao registrar a foto histórica do corpo de Zé Pequeno (Leandro Firmino) estirado no chão alvejado de balas. A carreira no fotojornalismo, portanto, é algo que se seguiu naturalmente, e ao longo de 20 anos ele acumulou prêmios e se tornou referência fotografando para as páginas policiais. 

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No entanto, o ponto de conflito vem para incomodar Buscapé, o público e até a própria série. Afinal, fotografar tiros, sangue e gente morta não é o que ele (ou a produção) quer.

"Ele buscou aquilo que queria, teve a oportunidade para que aquele sonho dele se realizasse. Ele se aprofundou muito, mas chegou o momento em que ele se perdeu", pontua Alexandre. "Esse é um dos grandes contrapontos, a trama de que queremos conversar sobre esse personagem, sobre como ele se perdeu dentro disso e como ele vai ser resgatado."

Foto: Divulgação/Renato Dias

"Eu acho que ele viver esses dilemas é uma coisa interessante, porque nós não conseguimos ver muito isso lá no Cidade de Deus, no filme. O mais interessante da série é exatamente mostrar a parte humana desse personagem, que todo mundo gosta dele, porque é o cara que luta pelos seus ideais e tudo mais. Porém, agora vão ver que ele lutou tanto pelos ideais que agora ele está totalmente cego por esses ideais e acabou meio que perdendo o fio da meada ali."

"Acredito que o Buscapé saiu da favela, mas a favela não saiu do Buscapé. Ele vive num mundo diferenciado, mora em Copacabana, num apartamento, vive chamando a própria mãe e a filha dele para morarem lá, mas elas não querem. Elas têm raízes mais aprofundadas que o próprio Buscapé."

Quanto vale a carne negra?

Cidade de Deus: A Luta Não Para
Foto: Renato Nascimento/Divulgação

Este dilema de Buscapé reflete de certa forma o discurso da cosmética da fome, que versa sobre o domínio das técnicas visuais e narrativas para mostrar a "brutalidade do mundo num envelope atraente". A ideia, veiculada pela comunicadora Ivana Bentes, é uma espécie de continuação do manifesto da “Eztetyka da Fome”, de Glauber Rocha. 

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"A gente tem uma preocupação que vimos muito nas séries da Max e em outras séries nacionais que é retratar o Brasil como ele é, mas não deixar de mostrar", coloca Silvia Fu, diretora de conteúdo de ficção da Warner Bros. Discovery no Brasil.

"Não é porque a gente está mostrando, e está mostrando de uma forma bonita, uma coisa que é dolorosa, que é ruim. Temos que mostrar o Brasil. A gente teve essa preocupação, e a série é muito bem fotografada, inclusive, fotografada com estilo. A gente tem a visão do Buscapé, ali, muitas vezes, que é um fotógrafo que veio de comunidade e tira fotos lindas e belas, mesmo da violência no seu estado mais cru, que é alguém morto. Mas temos que mostrar a vida", exemplifica.

Cidade de Deus: A Luta Não Para
Foto: Renato Nascimento/Divulgação

"A gente fala de violência, mas nos interessa muito mais o reflexo da violência na vida das pessoas do que a violência em si", encerra o diretor-geral, Aly Muritiba. 

"Então, embora haja violência na série, o nosso foco está muito mais no que acontece com a pessoa que está acuada enquanto está acontecendo uma troca de tiro lá fora. O que acontece com uma dona de casa, com uma moradora, que hoje não vai conseguir sair para trabalhar na Zona Sul porque está rolando uma baita troca de tiro. Então, é uma mudança de perspectiva apenas. Não quer dizer que seja correta ou incorreta, adequada ou inadequada. Contar histórias é escolher um ponto de vista narrativo. O ponto de vista narrativo nosso é esse, do morador da comunidade."

Com seis episódios na primeira temporada, "Cidade de Deus: A Luta Não Para" terá lançamentos semanais todos os domingos às 21h, na HBO e na Max. 

Fonte: Redação Entre Telas
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