Quem assistiu a "Os Quatro da Candelária" esperando por uma reconstituição fiel do assassinato brutal de oito jovens e crianças que dormiam nas escadarias da Igreja da Candelária, no centro do Rio de Janeiro, em 23 de julho de 1993, provavelmente tomou um susto ao descobrir que a série não é nada disso. Ao invés de colocar os holofotes sobre o crime, a série criada por Luis Lomenha e dirigida por ele ao lado de Márcia Faria coloca no foco os sonhos interrompidos -- de forma literal e figurada --, e busca a universalidade do assunto.
Por isso, quem prestou atenção viu ali na cena alguns elementos que poderiam parecer deslocados no tempo. A Pira Olímpica, carros modernos, letreiros luminosos que não existiam há 30 anos. A intenção é brincar com a fantasia e mostrar que aquele episódio bárbaro não é um fato isolado, conforme o próprio Lomenha afirma. "O que é primeiro plano é de 1993. Figurino, adereço, tudo. Do segundo plano para frente, é século XXI e é intencional, porque nós queremos passar a atemporalidade. Isso segue acontecendo. Poderia ser hoje."
Aos 46 anos, Lomenha tem em "Os Quatro da Candelária" sua primeira série de TV, mas não o seu primeiro trabalho de direção. Descoberto no elenco de "Cidade de Deus", ele está habituado a usar o cinema para dar voz a setores menos visíveis da sociedade, e entende melhor que muita gente como a arte é um caminho importante para a democratização do acesso a melhores condições.
"Desde muito novo eu era muito cinéfilo, porque nos anos 80 e 90 o cinema era muito barato. Era um programa de famílias mais pobres", recorda, em entrevista ao Terra. "Diferentemente de hoje, que para chegar ao cinema você precisa entrar em um shopping, naquela época as pessoas iam para ficar no ar condicionado. Tinha muito cinema na Zona Norte [do Rio], e eu peguei o fim disso. Eu não fazia ideia de como aquilo era produzido, mas gerava um encantamento."
Foi a partir desta paixão que Lomenha se debruçou sobre a carreira artística. Formado em Letras, ele se dedicou à escrita ainda nos tempos de colégio, e foi no encontro com "Central do Brasil", quando terminava o ensino médio, que decidiu ir trabalhar com teatro. "Depois, sem querer, fui parar no 'Cidade de Deus', e aí foi um encontro de toda essa memória afetiva com o cinema. E então eu não parei mais."
Desde então, ele dirigiu documentários, filmes e seriados, e além de fundar sua produtora, a Jabuti Filmes, fundou a instituição social Cinema Nosso, escola popular de Cinema que existe há 20 anos e é considerada uma das maiores da América Latina.
"Quando começamos, entre 2001 e 2002, havia um grupo de crianças de 'Cidade de Deus'. Nós éramos mais velhos, com uns 20 anos, e íamos trabalhar, mas as crianças não podiam. Então, a gente voltava e conversava com eles sobre o que havíamos feito. Assim, foram chegando mais crianças e jovens periféricos, sobretudo quando o filme estreou e começou a fazer sucesso. Quando vimos, já estávamos trabalhando e ensinando para eles o que a gente aprendia durante a semana. Isso foi crescendo."
Lomenha conta que o crescimento do Cinema Nosso acompanhou as transformações do setor audiovisual no Brasil, e que hoje muitos dos profissionais formados lá seguem no mercado de trabalho. "Naquela época, o mercado era muito incipiente. A maioria dos alunos da primeira geração foi para a universidade, mas não trabalha com cinema. Mas as gerações seguintes, depois da digitalização e da lei da TV paga, encontraram um lugar muito diferente, em que você se forma e, de fato, pode entrar."
"O Cinema Nosso é, sem dúvida, a escola que mais forma estudantes negros da periferia do Brasil. E encontramos muitas gerações no set de Os Quatro da Candelária, de profissionais a iniciantes. Tivemos basicamente um estagiário por departamento que trabalhou com pessoas das outras gerações."
Um projeto de voz
É justamente considerando a trajetória de Lomenha que "Os Quatro da Candelária" soa como a continuação de um ciclo. Em 2009, Luis lançou o documentário "Luto Como Mãe", que conta as histórias de mães de crianças e jovens mortos por policiais militares no Rio de Janeiro. A partir dali, os eventos começaram a se encaixar.
"Desde então, ficou essa vontade de fazer uma ficção tanto do caso da Candelária quanto da chacina de Acari. Quando chegou 2018, fiz outra série e conheci o Snoop, que é um dos sobreviventes, e coincidentemente, filho adotivo de um casal que cuidou de muitas crianças que estiveram no elenco de 'Cidade de Deus'. Parece que foi um sinal. Naquela época, o Snoop estava desempregado e falou da vontade de voltar ao audiovisual. Foi ali que nasceu. A ideia já existia, mas foi ali que ela tomou corpo."
Em 2020, quando a Netflix se envolveu na produção, veio a montagem da sala de roteiro e a definição de um formato com quatro episódios. "A gente tinha algumas referências, como 'When They See Us', da Ava DuVernay, e começamos a trabalhar. A ideia de contar sob o olhar deles sempre esteve presente, porque as mães sempre me falavam da vontade de ver os filhos representados vivos."
Um pouco de realidade e um pouco de ficção
Ambientada no centro do Rio de Janeiro, "Os Quatro da Candelária" relata as 36 horas anteriores à chacina, pelo ponto de vista de quatro das crianças que dormiam na escadaria da igreja: Douglas (Samuel Silva), Sete (Patrick Congo), Pipoca (Wendy Queiroz) e Jesus (Andrei Marques). As histórias foram desenvolvidas a partir do trabalho com os sobreviventes e dos relatos das últimas 3 décadas, mas Lomenha quer que o público entenda a magia da ficção que existe ali -- e, é claro, o poder que ela carrega.
"Acho que a melhor forma de representá-los, humanizá-los e devolver a eles a infância que foi roubada era trabalhar esse imaginário infantil, o sonho, o senso de comunidade e família que eles criaram naquele espaço hostil a eles", explica o criador. É neste ímpeto que cada episódio apresenta um pouco do que cada uma dessas crianças queria -- seja dinheiro para enterrar o pai de forma decente ou a possibilidade de entrar para a marinha -- com elementos de fantasia inseridos na realidade.
É claro, houve um trabalho forte de pesquisa e embasamento antes de
se tornar realidade. Lomenha conta que conduziu longas entrevistas com Wagner, sobrevivente e testemunha-chave, ainda quando fazia "Luto Como Mãe", e aos poucos outros sobreviventes uniram-se ao trabalho para compor o cenário e elucidar a ideia da realidade naquela escadaria. "Eles narraram muito o que tinha acontecido, como era a vida, o que pensavam e gostavam de comer, quais músicas ouviam. A gente trabalhou com essas informações,"
"Nossa ideia nunca foi culpar ninguém sobre o crime. A ideia geral era mostrar que, embora aqueles indivíduos tivessem puxado o gatilho, todos os personagens são vilões ali naquele contexto. A sociedade como um todo fechou os olhos para isso e aceitou essa barbárie."
Neste mesmo sentido, a proposta de mesclar elementos da época com elementos modernos também é interpretativa.
"A história da Candelária não é só desses meninos, é a história de 400 anos da construção daquela igreja. Isso não teria acontecido se não tivéssemos aquele passado, ou se o tivéssemos revisto de uma forma mais contundente com os fatos. Nós varremos o problema para debaixo da terra e continuamos matando as mesmas pessoas até hoje."