Mais de 30 anos depois da chacina da Candelária, ocorrida no centro do Rio de Janeiro na noite de 23 de julho de 1993, um dos oito jovens mortos a tiros por dois policiais e dois ex-PMs ainda não foi identificado, e ficou registrado na história apenas como "Gambazinho", apelido que tinha nas ruas. Agora, com a sua série fictícia inspirada no crime bárbaro, Luis Lomenha quer devolver os sonhos e a dignidade a jovens e crianças que perderam a vida marginalizadas pelo sistema.
"Os Quatro da Candelária" parte dos registros reais para contar uma história imaginada. Ambientada durante as 36 horas que antecederam a chacina, a série parte dos pontos de vista de quatro personagens, Douglas (Samuel Silva), Sete (Patrick Congo), Pipoca (Wendy Queiroz) e Jesus (Andrei Marques), contando um pouco de suas realidades antes de serem assassinados.
Durante bate-papo realizado na 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, o criador Luis Lomenha, acompanhado do produtor Fernando Meirelles e da codiretora Márcia Faria, compartilhou os bastidores da série e salientou que não se trata de um true crime.
"Eu era adolescente na época da chacina, e tenho memórias muito fortes porque, naquela época, íamos muito para o centro da cidade. Na cabeça de uma criança, o centro do Rio é um lugar muito suntuoso, aqueles prédios imensos com aquela arquitetura barroca. Era como um território muito próximo para mim, e foi de fato algo que tocou muito", recorda-se.
A história permaneceu na cabeça do diretor. Em 2009, ele lançou o documentário "Luto Como Mãe", sobre o luto e a luta de mulheres que tiveram seus filhos assassinados por policiais militares no Rio de Janeiro. Foi a partir de então que surgiram outros projetos que eventualmente o trouxeram ao lançamento atual. "Eu já tinha a ideia de fazer uma ficção sobre a Candelária, e foi em 2018 que a ideia amadureceu e, em 2020, a gente conseguiu avançar."
De Cidade de Deus para Os Quatro da Candelária
Esse avanço veio muito com o envolvimento de Fernando Meirelles como produtor, por ser um nome conhecido e experiente no audiovisual. Mas a relação entre os dois é antiga.
"O Luis fazia parte do elenco de Cidade de Deus, e tínhamos uma relação muito intensa. Após o filme, começamos a fazer, com o apoio da Kátia Lund, reuniões com workshops de ator", contextualiza.
Foi daí que surgiu a ONG Cinema Nosso, criada por Lomenha visando ser uma escola popular para formar novos profissionais da área – e que segue dando frutos. "Quando fizemos 'Os Quatro', foi muito legal porque tínhamos na equipe várias gerações desses 20 anos do Cinema Nosso", orgulha-se Luis.
Atuando nos bastidores com apoio à estrutura da ONG, Meirelles não perdeu o contato com a organização, e acabou entrando como produtor da série justamente para compartilhar seus conhecimentos.
"Eu entrei como um 'selinho'. Como seria o primeiro projeto grande do Luis, e temos uma relação de confiança há mais tempo, a Netflix pediu para eu entrar e dar um suporte. Mas o que aconteceu foi que eu fiquei fora e não acompanhei as filmagens. Voltei no processo de montagem e fui bem 'pentelho', e minha contribuição foi nessa etapa", explica.
Fernando Meirelles
Ficção com ares de realidade
Para criar a série, Luis e sua equipe ouviram inúmeras histórias de sobreviventes e familiares da chacina, além de contarem com pessoas no time de consultores. No entanto, o objetivo não era fazer um documentário.
"Sempre fomos muito mais fiéis à ficção do que à realidade no processo de escrita, mas sempre com a ideia de primeiro devolver essas crianças à infância roubada, e depois humanizá-las. A ideia era trabalhar no olhar delas. No 'Luto Como Mãe', abordamos a dor de quem fica. Mas, quando trabalhamos em uma cosmovisão mais ancestral, quem vai também sofre."
"As próprias mães falavam que queriam muito ver os filhos. Elas falam: 'A gente só vê os corpos dos nossos filhos, eles estirados no chão quando tem matéria jornalística ou alguma coisa. A gente queria vê-los vivos'. Então, partiu um pouco disso e da proximidade que tenho com elas até hoje."
Luis Lomenha
Por isso, Luis foca que a ideia não era trazer a "visão vertical" dos policiais, mas imaginar o que estaria passando nas cabeças daquelas crianças.
"Não fazemos true crime, nossa série tem uma pegada de realismo fantástico. O objetivo é dar uma 'saculejada' na estética. Às vezes nos vemos presos a certos modelos consolidados. Não temos a expectativa de revolucionar e transformar a realidade de todas as crianças em situação de rua, mas se a gente revolucionar a estética a partir do olhar delas, já é um grande feito", opina.
"O grande objetivo é a ressignificação dessas crianças. São potências, não exploramos a carência. Temos alguns sobreviventes que são pessoas muito bem sucedidas. Se os outros 70 estivessem aqui, talvez eles também pudessem estar contribuindo para o desenvolvimento do país."
"Os Quatro da Candelária" já está disponível na Netflix.