Novela ou série? A discussão que tomou conta das redes sociais nos últimos meses quando o assunto era "Pedaço de Mim", novo lançamento brasileiro da Netflix, é o que menos importa agora que a atração, enfim, está no ar. Encabeçada por Juliana Paes e Vladimir Brichta, a série de melodrama --nomenclatura oficial da própria plataforma de streaming-- mistura elementos dos dois formatos para criar um produto que, idealmente, atenda a demanda do consumidor brasileiro ao mesmo tempo em que seja facilmente embalável para exportação.
O resultado, ao menos nos quatro primeiros episódios aos quais a imprensa teve acesso antecipado, entrega o que se espera.
Há antes de mais nada o que parece ser uma tarefa de casa muito bem feita pela plataforma na hora de desenvolver o projeto. A criadora e roteirista Angela Chaves traz consigo um currículo invejável e que explica as raízes tão novelescas da história. Colaboradora de autores renomados, ela trabalhou em "Viver a Vida" (2009) e "Páginas da Vida" (2006), de Manoel Carlos, e em "Celebridade" (2003), de Gilberto Braga, além de ser creditada roteirista em "Maysa: Quando Fala o Coração" (2009), "Brava Gente" (2002) e, mais recentemente, a autora da última versão de "Éramos Seis" (2019). Aliás, ela também está envolvida na série biográfica "Senna", da Netflix.
Mas Angela não é a responsável solitária por "Pedaço de Mim". O projeto tem também Maurício Farias ("Hebe: A Estrela do Brasil", "Um Lugar ao Sol") na direção artística, e a dupla trabalha em sincronia para entregar um resultado que tem o melhor dos dois mundos.
A trama melodramática de uma mulher que deseja ser mãe e está no centro de uma teia de sofrimento ganha tons e cores com um roteiro que permite aos personagens demonstrarem múltiplas camadas e pontos de vista, sem que a capacidade do público de entender a complexidade de sentimentos seja subestimada. Há um requinte de fotografia que ajuda a compor a solidão e a agonia dos personagens. Evitando se estender de forma desnecessária e longa, a trama é objetiva e condensa em quatro episódios o que facilmente poderia ocupar uma temporada inteira de uma série tradicional ou a primeira fase de um folhetim global.
Desta forma, os elementos novelescos são muitos, mas os elementos de uma série também estão ali.
Estamos falando de uma trama concisa, que não se ramifica em múltiplos núcleos e que vai direto ao ponto. Estamos falando também de uma história que envolve bebês, uma gravidez rodeada de dilemas éticos e morais, muitos problemas familiares e cujo grande motivador é o acúmulo de segredos que vão caindo sobre os ombros de uma única personagem.
O teor melodramático, cabe ressaltar, é justificado a todo momento, mas sem tornar a história exageradamente emotiva ou irreal. Aliás, é muito pelo contrário: é uma história absurdamente envolvente e angustiante porque faz tudo parecer palpável. A cada dilema, é possível entender mais de um lado da situação.
Tudo isso não seria possível sem a entrega absurda dos atores. Juliana Paes, que roubou a atenção na primeira fase de "Pantanal" (2022) como Maria Marruá e repetiu o feito nos capítulos iniciais de "Renascer", no papel de Jacutinga, aqui vive Liana, uma mulher que sonha em ser mãe e tenta sem sucesso engravidar de seu marido, Tomás (Brichta). Terapeuta ocupacional, ela trabalha com crianças e leva uma vida sossegada no Rio de Janeiro, embora o casamento não esteja na melhor fase diante das tentativas falhas de gerar um filho. Com a descoberta de uma traição, ela acaba ouvindo os conselhos de uma amiga para ir a uma festa, e termina a noite sendo vítima de um abuso sexual que mudará sua vida para sempre.
Liana é uma personagem que exige bastante de Juliana Paes. Afinal, é uma mulher com muitas dores e, ao mesmo tempo, muita determinação, e equilibrar tantas nuances de maneira natural enquanto transmite ao público toda a complexidade de sentimentos que passam por ela é uma tarefa que a atriz cumpre com louvor.
Sem conseguir lidar muito bem com o fato de ter sofrido um abuso, Liana descobre uma gravidez rara: ela é um dos pouquíssimos casos no mundo de superfecundação heteroparental: ela descobre que está esperando gêmeos. São dois meninos, mas filhos de pais diferentes. Um dos bebês é filho de Tomás, seu marido. O outro é fruto do abuso que ela gostaria de esquecer.
A descoberta faz desenrolar uma teia de segredos que exigem cada vez mais de Liana (e também de Juliana), mas Vladimir Brichta também enfrenta um papel extremamente desafiador. É ele quem traz à tona assuntos complexos e difíceis de serem discutidos; embora ele seja um homem tempestuoso, é uma construção elaborada que vai o transformando, aos poucos, em uma figura mais assustadora. Em evento com a imprensa no Rio de Janeiro, o ator comentou:
"Hoje, as coisas têm nome. Em 2006, quando a história começa a ser contada, as pessoas poderiam dizer que meu personagem, o Tomás, é nervoso. Agora, em 2024, sabemos que ele é tóxico. E entender exatamente o que é esse tipo de comportamento e dar o nome certo às coisas é o primeiro passo para uma correção. A minha fé é geracional, que as próximas gerações virão melhores."
É neste tom de conflitos que parecem retirados diretamente de algumas das novelas de maior sucesso da TV Globo que "Pedaço de Mim" chega para tentar emplacar de vez um sucesso da Netflix que tenha cara e voz de Brasil.
A princípio, pegar emprestadas as referências da TV tradicional parece uma excelente ideia e, a julgar pelos quatro primeiros episódios, a série tem todos os elementos para se transformar em um sucesso arrebatador. Tem complexidade, discussões sociais tópicas e relevantes e assuntos perfeitamente capazes de reunir toda uma família. No final, pode chamar de novela, série ou do que quiser: o que importa é ter uma boa história. E isso, "Pedaço de Mim" com certeza tem.
Os 17 episódios já estão disponíveis na Netflix.