As montanhas do oeste da Irlanda são mais do que paisagem. São personagens. É nesse cenário agreste que Christopher Andrews estreia no cinema com Bring Them Down. O filme, que acaba de chegar ao MUBI, promete arrancar o espectador da sua zona de conforto e mergulhar nas entranhas mais obscuras das rivalidades rurais.
A origem do projeto nasce do olhar. "Temos áreas belíssimas no Reino Unido, com montanhas, lagos e florestas, e simplesmente não as utilizamos no cinema", diz Andrews ao Estadão em 2024, ainda no circuito de festivais. "Sempre retratamos cidades ou vilarejos, e me pareceu uma grande oportunidade usar esse cenário para contar uma história."
Foi durante uma caminhada que Andrews avistou a imagem que o capturou: um pastor guiando seu rebanho através da névoa. "Uma imagem singular, muito cinematográfica", diz.
A partir disso, a trama segue Michael O'Shea (Christopher Abbott), o filho mais novo de uma família de pastores, que vive com seu pai doente em uma fazenda isolada.
Michael carrega o peso de um passado traumático: anos antes, ele causou um acidente de carro que matou sua mãe e deixou sua então namorada, Caroline, desfigurada. Após o acidente, Caroline se casa com Gary (Paul Ready), um fazendeiro vizinho, enquanto Michael permanece preso à sua rotina na fazenda, sob a sombra do temperamento amargo e autoritário de Ray, seu pai.
A tensão entre as famílias aumenta quando Jack (Barry Keoghan), filho de Gary, rouba duas ovelhas de Michael, tentando passá-las como suas. Esse ato aparentemente simples serve como estopim para uma escalada de hostilidades que revela ressentimentos antigos e desencadeia eventos devastadores.
Um filme sobre raiva
Abbott, o protagonista atormentado, viu no roteiro muito mais do que um simples papel. "Tudo começa pelo roteiro e pela história", diz o ator, claramente empolgado com o filme. "Chris escreveu um roteiro lindo". Para o ator, o desafio ia muito além de decorar falas ou criar um sotaque. Era sobre mergulhar em uma realidade completamente nova.
A preparação física foi intensa. Abbott e Barry Keoghan, que contracenam no filme, já se conheciam e até treinavam boxe juntos - uma intimidade que transparece nos confrontos. "Eu podia conversar com eles sobre serem mais físicos em determinada cena, sobre a proximidade entre os personagens", explica Andrews. "Essa conexão ajudou muito, porque eles podiam se empurrar, entrar um no espaço do outro, sem que isso parecesse artificial."
Para complicar ainda mais o processo, Andrews decidiu que o personagem de Abbott tinha que falar em gaélico com o pai - idioma típico da Irlanda. "Foi um desafio, mas também muito divertido. O gaélico é uma língua muito antiga, belíssima e única, mas que não era familiar para mim", conta. Mais do que isso, o idioma se tornou uma metáfora para o próprio personagem. "A dificuldade de me expressar por meio dessa língua acaba sendo algo que se conecta com Michael, que também tem dificuldades para se comunicar com os outros."
Violência é o idioma
Desde as primeiras exibições do filme em festivais, se fala muito sobre a violência do longa - há uma pancadaria gratuita, sangue e coisas do tipo. Andrew explica que a violência não é gratuita, mas sim um idioma complexo de emoções reprimidas. Como observa o próprio Abbott, "toda vez que há um confronto físico entre os personagens, logo depois vem algum tipo de interação física mais afetuosa." É uma dança de brutalidade e vulnerabilidade.
Um assunto, aliás, que está em alta. A Espanha recentemente brindou os espectadores com um drama refinado sobre o tema - As Bestas, falando sobre a ignorância de homens que só se comunicam com a violência - e agora o Brasil, com o excepcional Oeste Outra Vez. Na história brasileira, temos um mundo dominado por homens e que, com isso, passa a ter características de masculinidade frágil, como ausência de conversas e muita violência.
O momento crucial para entender tudo isso, de acordo com Andrews, está bem no final do filme - e cuidado, a partir de agora, com spoilers.
"Michael pede desculpas, mas não se justifica. Mesmo tendo sofrido coisas terríveis, ele não tenta legitimá-las ou encontrar desculpas", diz. Para o diretor, há uma redenção: "ele não tenta se absolver, apenas pede desculpas. É quase como se estivesse assumindo os pecados de Jack e os levando para aquela casa amaldiçoada, permitindo que ele tenha uma chance de esperança e um futuro."
Abbott vê além. "Acho que ele tem esperança, sim", diz sobre seu personagem, após a reportagem do Estadão dizer que vê Bring Them Down como um mundo perdido. "Ele só não sabe exatamente de onde ela virá, ou de quem. Mas a verdade é que essa esperança precisa vir dele mesmo." É nessa complexidade que o filme encontra sua força - não em heróis ou vilões, mas em seres humanos fragmentados tentando se reconstruir.