No dia 9 de janeiro de 2004, Priscila Belfort, então aos 29 anos, saiu de casa e pegou uma carona com a mãe para ir ao trabalho, no centro do Rio de Janeiro. Poucas horas depois, a irmã do lutador de MMA Vitor Belfort foi vista pela última vez enquanto caminhava pela Avenida Marechal Floriano, por volta das 13h. Desde então, a família vive um pesadelo que não acaba. Hoje, 20 anos depois, o paradeiro de Priscila ainda é desconhecido.
É com este gancho que chega nesta quarta (25) ao Disney+ a série documental "Volta, Priscila", que em quatro episódios relata as investigações policiais, a busca da família por pistas e a ação da cobertura midiática nas buscas pela jovem. Apesar de diversas pistas averiguadas na época, o caso Priscila Belfort permanece sem solução, e sua mãe, Jovita Belfort, ainda nutre esperanças de encontrar a filha, com uma única certeza: "O que eu sempre falo é que alguém sabe. Ela não foi abduzida. Uma pessoa, eu tenho certeza que sabe."
Para ela, revirar as lembranças da filha, de quem alterna falando no presente e no passado, não foi tarefa fácil: "Na minha cabeça, eu iria morrer e as coisas que eu sabia que estavam ficariam ali. Porque, apesar de todo santo dia eu viver um luto diário, porque toda mãe vive esse luto diário, a morte faz parte da vida. O desaparecimento não."
Dirigida por Eduardo Rajaball, a série conta com entrevistas de Vitor e Jovita Belfort, Joana Prado e José Marcos Belfort, além de jornalistas como Sonia Abrão e Gilberto Barros, cujos programas de TV cobriram imensamente o caso na época. Para os familiares, o documentário é tanto uma forma de manter a memória de Priscila viva quanto uma tentativa de jogar luz a casos de pessoas desaparecidas.
"Eu fiquei doente nisso", continua Jovita, falando sobre o processo de separar material de arquivo da filha para ilustrar a série. "Eu já estava doente, desde que a Priscila desapareceu. Todas as mães de desaparecidos têm pressão alta, diabetes, é impressionante. E eu, por um acaso, fiquei mais ainda nesse tempo, porque foi muita dor."
"A dor do desaparecido não cicatriza nunca. Enquanto você não tem uma resposta, ela não cicatriza. Mas eu acho que valeu a pena, ainda mais por vocês poderem conhecer a verdadeira Priscila. Valeu o sofrimento."
Jovita Belfort.
Jovita conta que, quando o projeto foi iniciado, quatro anos antes do lançamento (foram dois anos de pesquisa e dois de filmagens), ela tinha três objetivos: mexer no caso novamente, garantir que os netos conhecessem a tia e, por fim, tratar da logística da busca por pessoas desaparecidas em um escopo nacional.
"Quando a Priscila desapareceu, eu tive que vir a São Paulo colocar o nome dela no cadastro das Mães da Sé. Não existia absolutamente nada no Rio de Janeiro sobre desaparecimento. Mais de 80 mil pessoas desaparecem todo ano no Brasil. Então, o que acontece? São famílias despedaçadas por isso", desabafa.
"Uma mãe que ainda tem esperança de achar o seu filho vivo, porque ele só está desaparecido, não pode entrar em uma delegacia de homicídio. Isso é uma crueldade. O desaparecido você procura ainda com pessoa viva, e isso é a esperança de toda mãe, encontrar seu filho com vida (...) Todos nós temos esperança, porque até hoje ninguém me deu o corpo da Priscila."
Jovita Belfort, mãe de Vitor e Priscila Belfort.
Segundo Vitor, há alguns erros no caso de sua irmã que devem ser abordados e questionados. "Uma coisa que eu [não] entendo é porque a polícia insistiu unicamente em uma linha de investigação. Isso é inaceitável. Houve muitas lacunas e omissões. Ninguém investigou o que estava acontecendo nos últimos dez dias, nas duas últimas semanas da vida dela", diz o lutador, que também diz enxergar agora equívocos de sua parte.
"Esse documentário é um quebra-cabeça. Eu consegui ver como eu era terrível, só pensava em mim. Estava em uma carreira esportiva em busca de um cinturão, tinha acabado de me casar, um dos momentos mais importantes da vida de um homem."
"Era um dos lutadores mais renomados do mundo, no momento máximo da minha vida. Eu consegui ver nos episódios como eu estava em um momento tão único da minha carreira passando pela maior dor da minha vida."
Vitor Belfort.
Família quer protocolo para lidar com casos de pessoas desaparecidas e Alerta Pri
Atualmente, Jovita ocupa o cargo de Superintendente de Prevenção e Enfrentamento ao Desaparecimento de Pessoas e Acesso à Documentação Básica no Estado do Rio de Janeiro, dentro da Secretaria de Direito Social e Direitos Humanos. Nos sites institucionais do estado, é possível encontrar uma cartilha para a prevenção e o enfrentamento ao desaparecimento de pessoas no RJ, que a própria ajudou a implementar.
"Hoje, existe um protocolo para uma família seguir quando passa por isso", prossegue Vitor. "Então, eu espero que a gente possa, com esse documentário, investigar tudo novamente. Existem muitos outros suspeitos no caso. O que eu falo é que todo mundo é suspeito até que me prove o contrário."
Atualmente morando nos Estados Unidos com a esposa, Joana Prado Belfort, e os três filhos do casal, Vitor reforça que a família deseja aplicar em território nacional o Alerta Pri, uma espécie de regulamentação que funcionaria como o Amber Alert nos Estados Unidos.
Implementado em 1996, o Amber Alert é um sistema de alerta de rapto de crianças que dispara mensagens de texto para todos os aparelhos eletrônicos em um raio de distância do desaparecimento, com descrição da criança e de qualquer suspeito no envolvimento.
Em agosto de 2023, no entanto, o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) lançou um projeto para implementar o Amber Alert no Brasil em cooperação técnica com a Meta, responsável pelo Facebook, pelo Instagram e pelo WhatsApp. Até junho deste ano, 11 estados e o Distrito Federal já haviam aderido à ferramenta. Além da capital, são eles: Acre, Amapá, Ceará, Espírito Santo, Minas Gerais, Paraná, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul e Santa Catarina.
Neste formato, a ferramenta divulga fotos e a descrição das roupas de crianças e adolescentes desaparecidos em todos os feeds do Facebook e do Instagram, em um raio de 160 quilômetros do local onde a vítima foi vista pela última vez. Em pouco mais de dois meses de implementação, o Ceará, por exemplo, já havia localizado três crianças com a ajuda do alerta.
Segundo o projeto da família Belfort, o Alerta Pri dispararia mensagens de texto para todos os números de celular de dentro do estado da criança ou adolescente desaparecido. Em 2022, o programa funcionou no RJ, mas durou apenas poucos meses. Segundo a família Belfort, 99% dos desaparecimentos divulgados pelo alerta foram solucionados.
"As companhias telefônicas não quiseram arcar com esse custo, que era um custo baixíssimo", complementa Jovita.
'Criaram uma Priscila que não existia'
Um dos pontos amplamente debatidos no documentário é relacionado à participação da imprensa na divulgação do caso. Programas de auditório de cunho policialesco debruçaram-se imensamente sobre o desaparecimento de Priscila, chegando a aumentar a recompensa por informações concretas e alimentar a curiosidade pública sobre a tragédia. Para a família, tamanha repercussão até ajudou, mas também teve seus poréns.
"A imprensa fez o trabalho dela. Enfim, colocavam ali a notícia que era dada para eles", contextualiza Joana Prado. "Mas, hoje em dia, a gente tem essa liberdade de questionar, de desacordar e se respeitar. Eu acho que faltou isso. A gente escutou muitas histórias ruins. Criaram uma Priscila que não existia, criaram histórias que não existiam."
Uma dessas histórias que repercutiram amplamente tem relação com um suposto envolvimento de Priscila com uso de drogas, o que a mãe nega veementemente. "Neste documentário, a pessoa de conteúdo descobriu de onde surgiu essa questão de falar que a Priscila era viciada. Eu não tenho nada contra viciado, não, porque é uma pessoa doente. Se a Priscila fosse viciada, eu cuidaria dela sem preconceito nenhum", pontua Jovita.
"Na época do Orkut, alguém lá falou que a Priscila era viciada. E dali surgiu. Eu agradeço a todos que [repercutiram a história], porque só existe Priscila se a foto dela estiver estampada. Se não tem foto do desaparecido, ninguém sabe quem é. Mas ninguém nunca bateu na minha porta, do meu filho ou da minha irmã, para saber quem era a Priscila. No final, eu até queria ir contra o jornal, porque ele foi absurdamente escroto. Mas ninguém deixou eu ir, porque eu iria sofrer mais (...) Então, eu acho que essa questão da imprensa, de tocar só nessa questão de tráfico, de ser uma viciada, atrapalhou bastante, infelizmente."
Jovita Belfort
Como foi o caso?
Priscila Vieira Belfort desapareceu no dia 9 de janeiro de 2004, no centro do Rio de Janeiro, onde trabalhava em um prédio próximo à Avenida Presidente Vargas. Ela foi vista pela última vez na Avenida Marechal Floriano, por volta das 13h, por um colega de trabalho que disse que ela parecia desatenta.
A família registrou um boletim de ocorrência sobre o desaparecimento na 14ª DP, no Leblon. Após buscas ininterruptas, o caso foi noticiado em rede nacional pela primeira vez no "Domingo Legal", do SBT. A investigação do caso passou a ser conduzida pela Delegacia Antissequestro (DAS).
Nos meses que se seguiram ao desaparecimento de Priscila, a polícia passou a considerar o envolvimento de uma quadrilha do Morro da Providência. Uma operação chegou a ser feita em busca de uma garagem desativada onde, segundo denúncias, estaria Priscila. No entanto, nenhum vestígio dela foi encontrado.
Em agosto de 2007, após a exibição de um programa especial de Priscila no "Linha Direta", uma mulher de 27 anos, Elaine Paiva, se entregou e confessou fazer parte da quadrilha que sequestrou, estuprou, esquartejou e queimou o corpo de Priscila, como consequência de uma suposta dívida de R$ 9 mil. Ela indicou um sítio em São Gonçalo onde estariam os restos mortais da vítima, mas nada foi encontrado no local. Meses depois, Elaine disse que era tudo mentira.
Até hoje, o caso de Priscila Belfort segue sem solução.