Ressurgência de adaptações de musicais dos palcos para as telas com 'Wicked' destacando-se como representante de sucesso.
Têm sido anos intensos para fãs de cinema e teatro musical. Da tragédia anunciada que foi "Cats" em 2019 (um filme que muitos de nós gostaríamos de esquecer) à lenta, mas constante inserção de gravações profissionais de teatro (os proshots) às plataformas de streaming, vivemos um período de ressurgência de adaptações de musicais dos palcos para as telas. Se a moda é consequência de uma fase do audiovisual em que faltam ideias novas e tudo é sequência ou refilmagem, sai feliz quem consegue separar o joio do trigo. Afinal, como em qualquer safra, há resultados bons, medianos e ruins. Felizmente, o mais recente representante desta lista encaixa-se na primeira leva.
Quem vem de outros carnavais já sabe que não é de hoje que se fala em um filme de "Wicked". O musical que encanta os palcos da Broadway desde 2003, e é sucesso desde então, já foi adaptado para dezenas de países e a promessa de um dia vê-lo nos cinemas por pouco não virou lenda. Mas, em um momento em que tantos filmes tentam esconder o fato de serem musicais, com medo de uma reação negativa de um público que jamais se interessaria por aquelas histórias a princípio, é um alento ver um longa que não apenas ostenta com orgulho o título de musical mas também aproveita todas as possibilidades da telona ao máximo, para criar um espetáculo único que capture a magia daquela história.
O mérito desta pose irredutível está na excelente escolha de Jon M. Chu para assumir as rédeas de "Wicked". O diretor, tão versátil quanto a missão exige, já vinha flertando com filmes musicais desde "Ela Dança, Eu Danço 2" (2008), mas se estabeleceu como uma voz a ser ouvida quando engatou o sucesso da comédia romântica "Podres de Ricos" (2018) com "Em um Bairro de Nova York" (2021), adaptação do musical de estreia de Lin-Manuel Miranda, "In the Heights".
Foi a destreza com que Chu mistura a graça, o romance e os elementos rítmicos em um ambiente urbano e incansavelmente agitado que deixou claro que o diretor teria algo de interessante a acrescentar à história de origem de Elphaba, a Bruxa Má do Oeste de "O Mundo Mágico de Oz".
Aclamado por agregar inclusão a grandes blockbusters enquanto quebra recordes de bilheteria no caminho, Chu promete repetir o feito no longa que chega aos cinemas nesta quinta-feira (21). Seu filme encanta com um visual esteticamente deslumbrante, com cenários quase que inteiramente construídos de verdade, e entrega Ariana Grande e Cynthia Erivo ao panteão de parcerias inesquecíveis da sétima arte.
Aqui, o diretor não apenas formata o musical dos palcos para uma versão fechada pelos limites da câmera. Chu adiciona seus próprios floreios ao material de origem, potencializando ainda mais as cenas musicais e utilizando as possibilidades do cinema (os planos fechados, longos e travellings) para dar mais intensidade aos mesmos.
Inspirado no livro "Maligna", de Gregory Maguire, e no musical fenômeno com libreto de Winnie Holzman, "Wicked" conta uma história que precede aquela abordada em "O Mágico de Oz" (1939), que começa quando Dorothy e Totó são levados para um mundo mágico com uma estrada de tijolos amarelos. Aqui, ouvimos o outro lado dessa trama, que começa quando uma jovem, desajustada (e verde) Elphaba Thropp é forçada a dividir um quarto com a delicada e popular Galinda na Universidade Shiz.
O jogo de opostos protagonizado por Elphaba e Glinda é, sim, a força-motriz desta história, mas também é nada mais do que uma cortina que camufla algo maior escondido nas entranhas desta saga de fantasia. E entender e dar o foco necessário a isso é o grande acerto e o maior diferencial da versão para as telas.
Disfarçada sob a pele verde de Elphaba e o preconceito que a mesma sofre por representar o estranho e o desconhecido, está uma história de resistência e uma fábula antifascista. Enquanto a produção para os palcos dá mais foco para a amizade entre as duas protagonistas e a história de amor envolvendo Fiyero (Jonathan Bailey), deixando a mensagem potente mais no subtexto, o filme abre mais espaço para mostrar que aquele é um conto sobre como fascismo, populismo e propaganda trabalham para isolar e vilanizar aqueles que pensam diferente do que prega o sistema.
É por isso que faz sentido dividir a história em duas, já que o filme que chega esta semana às telonas é apenas a primeira parte desta trama de amor, ódio e a consequência das mentiras. A informação pode assustar quem olhar para o tempo de duração (são extensas 2h40), mas a proposta de partir "Wicked" ao meio se justifica quando observamos a intensidade com que o longa se dedica a apresentar cada personagem que terá um peso maior na segunda parte.
Isso não quer dizer, é claro, que tais escolhas não tenham suas consequências. As 2h40 às vezes testam a boa-vontade do espectador e vão além do necessário, sobretudo porque há um problema de ritmo em parte das cenas na Shiz.
Embora haja um preciosismo na manutenção destes momentos, que já denuncia o fato de o filme ser pensado para quem ama "Wicked" e espera por este filme há quase duas décadas, esse tempo maior dedicado a desenvolver os personagens salienta a urgência dos temas que estão sendo debatidos. O filme desenvolve com mais clareza, por exemplo, os dilemas éticos de Elphaba, a presença de Boq (Ethan Slater) e as ideias do Mágico (Jeff Goldblum). E, em um filme que demanda tamanha suspensão da realidade, este cuidado faz total diferença.
Afinal, um dos motores da trama está na luta do professor Dillamond (dublado por Peter Dinklage) e dos demais animais, que estão sendo isolados do convívio humano e confiados a gaiolas, por reconhecimento e para manterem o lugar que ocupam na sociedade. Eles encontram em Elphaba uma improvável aliada, e é esta luta para desfazer injustiças que desafia tudo o que os fãs entendem de "O Mundo Mágico de Oz". Entre uma pele verde, um mundo de magia e macacos voadores, "Wicked" faz um alerta pertinente e atual contra a lógica da doutrinação do pensamento, sem perder a emoção e a potência dos hits musicais que o colocaram na eternidade.
Por fim, é a parceria de Ariana Grande e Cynthia Erivo em cena que coroa tudo isso e faz com que a mensagem funcione. As duas atrizes recriam a grandiosidade amada no musical da Broadway ao mesmo tempo em que pegam essas personagens para si. Ariana parece ter nascido para interpretar Glinda, e Erivo abraça as delicadezas de Elphaba com tamanha força que faz sua trajetória ser ainda mais impactante. Com tudo isso, é difícil não concluir que "Wicked" tem tudo o que conta para ser popular.