A imprensa portuguesa repercute uma polêmica ocorrida no tradicional Teatro São Luiz, em Lisboa, na noite de quinta-feira (19).
A atriz e performer brasileira Keyla Brasil, que também se declara prostituta, invadiu o palco durante a encenação da peça ‘Tudo Sobre Minha Mãe’.
A produção é baseada no premiado filme homônimo do cineasta espanhol Pedro Almodovar, vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2000.
De calcinha e seios à mostra, Keyla fez um discurso contra a escalação de um ator cis, André Patrício, para interpretar Lola, personagem transexual feminina do roteiro.
“Desce do palco! Tenha respeito por esse lugar”, gritou a brasileira. As cortinas foram baixadas, deixando o elenco longe do olhar do público, mas a trans não se calou.
“O que está acontecendo é um assassinato, um apagamento da nossa identidade enquanto travesti”, afirmou.
“Se contrataram quatro mulheres, três homens, por que não contratam duas pessoas trans para fazer a personagem?”
Alguém na plateia gritou contrariado, porém, a manifestação prosseguiu.
“Sabe por que eu trabalho como prostituta?... Porque nós não temos espaço para estar aqui nesse palco, nesse lugar sagrado... Eu faria de graça esse espetáculo.”
Após o susto inicial, os atores se perfilaram na frente do palco para acompanhar o protesto. “Nós estamos contigo”, disse uma das artistas da peça.
Protesto semelhante aconteceu em janeiro de 2018 com o ator Luis Lobianco, o Vitinho da novela das 19h da Globo, ‘Vai na Fé’.
Ele foi alvo de reação da comunidade trans de Belo Horizonte por interpretar a transexual brasileira Gisberta Salce em um monólogo.
Radicada no Porto e vivendo em situação de miséria, Gisberta foi brutalmente agredida ao longo de vários dias por 14 adolescentes. O grupo praticava a tortura física e psicóloga em rodízio.
A trans, de 45 anos, morreu em consequência de múltiplos ferimentos externos e internos. Os criminosos foram sentenciados a penas leves.
Na época, Luis Lobianco defendeu o direito de interpretar uma personagem transexual. “Como ator assumidamente gay e realizando trabalhos com LGBTs me senti apto a contar essa história.”
Ouvida pelo Sala de TV, a atriz e ativista transexual Juhlia Santos, de BH, explicou a situação.
“No teatro pode tudo, inclusive o repensar artístico. Como artista, entendo que um ator ou atriz pode dar vida a qualquer personagem, sendo trans ou cis. Mas se de fato uma pessoa é sensível ao tema não cabe tomar o lugar de fala da outra”, disse.
“E a discussão vai além do ‘transfake’ quando pensamos que, durante anos, o espaço do teatro foi negado a mulheres e negros, e, ainda assim, em ‘Gisberta’ vemos um ator cis interpretar uma personagem feminina. Um homem tomando o espaço de mulheres.”
Após a repercussão na mídia e nas redes sociais das palavras de Keyla Brasil no palco do Teatro São Luiz, André Patrício foi substituído pela atriz transexual Maria João Vaz.
No espetáculo, outra personagem, Agrado, já era interpretada por uma artista trans, a brasileira Gaya de Medeiros, respeitado a identidade de gênero indicada no texto.
André Patrício continua no elenco porque faz outros três personagens, todos cis como ele próprio. O ator se mostrou contrariado com a manifestação.
“Não sou a favor da violência nem da invasão de palco. Senti-me violentado e castrado na minha arte, no meu trabalho. Também nós, trabalhadores da cultura (cis ou trans), somos uma minoria”, escreveu no Instagram.
Na mesma rede social, Keyla Brasil contou ter recebido mensagens de ódio e ameaças. Ela disse que ficará longe de Lisboa por alguns dias até se sentir novamente segura para circular pela cidade.