Morto aos 75 anos por complicações do Alzheimer e infecção sistêmica, Gilberto Braga merecia uma estátua ao lado da de Roberto Marinho nos jardins dos Estúdios Globo, no Rio. O autor fez a emissora carioca ser conhecida e admirada nos quatro cantos do planeta.
Baseado no romance homônimo de Bernardo Guimarães, ele escreveu ‘Escrava Isaura’, no ar de outubro de 1976 a fevereiro de 1977 na faixa das 18h. A trama protagonizada por Lucélia Santos no papel-título foi um fenômeno no País.
Dois anos depois, começou a ser vendida a canais no exterior. O sucesso se espalhou por continentes, idiomas e culturas. A TV Globo, que tinha pouco mais de uma década de existência, se tornou conhecida internacionalmente e virou sinônimo de novela de qualidade.
Braga deu outras relevantes contribuições à teledramaturgia da emissora. Criou clássicos do gênero como ‘Dancin’ Days’, ‘Água Viva’, ‘Anos Dourados’ e ‘O Primo Basílio’. Escrita em 1988 como uma crônica a respeito do jeitinho brasileiro de se dar bem na vida, ‘Vale Tudo’ pode ser considerada a melhor novela de todos os tempos e continua atualíssima.
Com menor pretensão artística, o autor fez os sucessos de audiência ‘Celebridade’, ‘Paraíso Tropical’ e ‘Insensato Coração’. Foi supervisor de ‘Lado a Lado’, folhetim abolicionista ganhador do Emmy Internacional.
A carreira teve poucos fracassos. Um deles ocorreu em 1991 com ‘O Dono do Mundo’, sobre o cirurgião plástico inescrupuloso Felipe (Antônio Fagundes) e a noiva virgem Márcia (Malu Mader). Era ousada demais para a mentalidade terceiro-mundista do brasileiro da época.
A trama apresentava uma marca registrada de Braga: o retrato da elite brasileira, especialmente daquilo que tem de pior. A cafonice, a tendência à decadência e os preconceitos sob o verniz de sofisticação. O autor era especialista em mostrar e criticar a alta sociedade, os burgueses tupiniquins e o desejo desesperado da classe média por ascensão social.
Quis o caprichoso destino que a última obra do novelista na Globo fosse um drama real nos bastidores. Lançada em 2015 com expectativa gigantesca, ‘Babilônia’ foi instantaneamente rejeitada pelo público e por parte da crítica de TV. Marcou média geral de 25 pontos, o pior índice na faixa das 21h na história do canal.
O beijo na boca entre Teresa (Fernanda Montenegro) e Estela (Nathalia Timberg) logo no primeiro capítulo suscitou a fúria dos conservadores, em prévia do radicalismo hipócrita de hoje. Em entrevista à GloboNews, Montenegro afirmou que a presença de muitos personagens negros bem-sucedidos em relações miscigenadas atiçou o racismo velado.
Depois de ‘Babilônia’, Gilberto Braga precisou de um tempo para se recuperar da frustração. Desenvolveu projetos potencialmente interessantes, como uma minissérie sobre o músico Tom Jobim, considerada cara demais pela Globo. Uma novela para as 6 da tarde, ‘Feira das Vaidades’, teve dezenas de capítulos escritos antes de ser cancelada. Ele preparava outro folhetim para fazer seu retorno à faixa das 21h.
Pela imensurável contribuição à emissora e à teledramaturgia brasileira, ele não merecia ter sido mantido na ‘geladeira’ nos últimos 6 anos de vida. Desperdício de talento em um período de várias novelas e séries esquecíveis.
Ainda bem que será lembrado por trabalhos de qualidade e personagens inigualáveis. Entre suas maiores heroínas estão Lurdinha (‘Anos Dourados’), Xepa (‘Dona Xepa’) e Heloísa (‘Anos Rebeldes’). A galeria de vilãs tem Rosa (‘Escrava Isaura’), Lourdes (‘Água Viva’), Maria de Fátima e Odete Roitman (‘Vale Tudo’) e Taís (‘Paraíso Tropical’, atualmente exibida no Viva).
Em 1999, tive a oportunidade de conversar alguns minutos com Gilberto Braga ao sentar ao lado dele na plateia do espetáculo ‘Últimas Luas’, estrelado por Antônio Fagundes, no Teatro Cultura Artística, em São Paulo. Ele estava com seu companheiro, o decorador Edgard Moura Brasil, com quem viveu por quase 50 anos. O novelista era como alguns de seus personagens: elegante, charmoso, culto, bem-humorado. Sua morte abre um abismo na televisão.