Não é incomum nos depararmos com notícias envolvendo feminicídio. Este tipo de crime acontece desde que o mundo é mundo. Por sorte, hoje em dia existem leis e campanhas de conscientização sobre abusos domésticos e violência de gênero que ajudam, ao menos, a espalhar a mensagem de que as vítimas não estão sozinhas e podem procurar ajuda. Contudo, se hoje em dia já é difícil a disseminação dessas informações, o que podemos dizer sobre o distante século 19, em uma Porto Alegre bem diferente do que conhecemos hoje? No dia 12 de novembro de 1899, uma jovem foi vítima de um assassinato brutal cometido por aquele que mais amava e confiava (coisas que infelizmente ainda podemos ler nas notícias do século 21).
Maria Francelina Trenes, uma jovem imigrante alemã de 21 anos, foi assassinada pelo namorado, o soldado da Brigada Militar Bruno Soares Bicudo, em um piquenique no Morro do Hospício. Atualmente, o local é conhecido como Morro Maria da Conceição. O motivo do crime, segundo testemunhas, foi uma discussão alimentada pelo ciúme de Bruno, que culminou no assassinato por degolamento. O caso teve grande repercussão, gerando horror na população e transformando a história de Maria em um símbolo de violência de gênero.
O julgamento de Bruno ocorreu rapidamente, e ele foi condenado por homicídio doloso. O soldado morreu sete anos depois, ainda preso. A brutalidade do crime, no entanto, transcendeu os tribunais e, com o tempo, Maria Francelina se tornou "Maria Degolada", uma figura mitológica local. Para alguns, ela foi vítima de uma tentativa de desmoralização, com rumores de que seria prostituta, usados como estratégia de defesa de Bruno. No entanto, a santificação popular de Maria parece responder a outra narrativa: a de uma mulher vítima de um feminicídio que se transforma em símbolo de resistência e proteção.
No local do assassinato, uma capela foi erguida em homenagem à "santa", que passou a ser venerada como Maria da Conceição. A devoção popular inclui pedidos e promessas que datam desde a década de 1940. A comunidade do Morro Maria da Conceição, uma das mais vulneráveis de Porto Alegre, encontrou na figura de Maria Degolada um símbolo de luta e identidade. Mesmo fora do reconhecimento oficial da Igreja Católica, ela é cultuada por pessoas de diferentes matrizes religiosas, incluindo católicos, evangélicos e praticantes de religiões afro-brasileiras.
O mito também carrega nuances sociais e raciais. Na comunidade, acredita-se que Maria, por ser uma mulher branca, teve sua história amplamente difundida e sua santificação popular amplificada. A pergunta "e se fosse uma mulher negra?" ecoa nas discussões sobre racismo e desigualdade social. Ao mesmo tempo, há uma crença particular: Maria não atende pedidos de policiais. A mística em torno dessa ideia reforça sua associação como protetora da comunidade contra a violência do Estado.
Ao longo dos anos, Maria Degolada inspirou livros, músicas, peças de teatro e até mesmo um documentário, consolidando seu lugar como parte do imaginário cultural de Porto Alegre. Sua capela, reconhecida como patrimônio da comunidade em 2012, continua a receber fiéis que veem em sua história uma força simbólica para enfrentar a exclusão e a opressão. Maria Degolada permanece viva na memória coletiva, um misto de tragédia e resistência que transcende o tempo.