Daniel Santiago tem construído com Eric Clapton uma relação raríssima entre artista brasileiro e rockstar internacional consolidado. Embora tenha um currículo de peso por trabalhos com Milton Nascimento, João Bosco, Hamilton de Holanda, Hermeto Pascoal, Seu Jorge, Ivan Lins e Toninho Horta — só para mencionar alguns —, o músico de Brasília não é exatamente um nome popular. Mesmo assim, conseguiu capturar a atenção do inglês, um dos maiores guitarristas de todos os tempos, e realizar uma série de colaborações.
A mais recente se deu em dose dupla na cidade de São Paulo. Santiago se apresentou ao lado de Clapton nos dois shows realizados pelo guitarrista na capital do estado homônimo, mais especificamente no Vibra (28 de setembro) e no Allianz Parque (29 de setembro). Juntos, tocaram "Lonely Stranger", "Believe in Life" e "Tears in Heaven".
Em entrevista à Rolling Stone Brasil, Daniel recorda que a conexão com Eric vem de muito tempo. O brasiliense tem uma parceria de anos com o músico Pedro Martins, que venceu um concurso de guitarra em Montreux (Suíça) do qual o também artista Kurt Rosenwinkel era jurado. Kurt, que é muito amigo de Eric, começou a trabalhar com Pedro. Assim, o autor de hits como "Layla" e "Tears in Heaven" teve acesso à obra dos brasileiros.
Em 2019, Santiago e Martins realizaram uma apresentação no Crossroads Guitar Festival, promovido por Clapton com renda destinada a seu centro de reabilitação em Antigua, Crossroads Centre. Dois anos depois, Daniel conseguiu trazer o ícone para participar de seu álbum solo Song for Tomorrow, na música "Open World". Eric, por sua vez, contou com a dupla brasileira no single "Heart of a Child".
Nos últimos tempos, o vínculo se intensificou a partir de uma figura em comum: Simon Climie. A convite do produtor de longa data de Clapton, o brasiliense participou de mais duas canções do britânico: "One Woman" e "How Could We Know". Ambas estão em Meanwhile, álbum lançado pelo artista inglês em outubro.
Daniel voltou a participar do Crossroads Guitar Festival em 2023. Também por meio de Simon, nasceu a ideia de um projeto: regravar músicas de Eric somente no violão. O álbum Daniel Santiago Plays… Clapton chegou a público em setembro, por meio da Surfdog Records, selo responsável por distribuir o próprio trabalho do gênio da guitarra. Onze faixas foram escolhidas para a homenagem, desde clássicos como "Cocaine" (original de J.J. Cale) e "Wonderful Tonight" até músicas menos conhecidas de sua longa discografia.
Essas e outras iniciativas foram comentadas por Santiago em entrevista à Rolling Stone Brasil. Confira!
O nascimento da ideia de Daniel Santiago Plays... Clapton:
Daniel Santiago: "A ideia desse disco aconteceu no último festival Crossroads (realizado em 2023 em Los Angeles). Em 2019, a convite da Melia Clapton (esposa de Eric), virei embaixador da Turn Up for Recovery, uma instituição parte do Crossroads que auxilia pessoas com dependência química. Aí, nessa oportunidade em 2023, fizemos um pocket show no palco externo do festival. Toquei uma versão de 'Change the World' e o Simon ouviu. Quando saí, ele elogiou e sugeriu pensar em algumas versões. Gravei três no fim de 2023: 'Change the World', 'My Father's Eyes' e 'Wonderful Tonight'. Em abril, o Simon disse que o selo queria lançar e aproveitar que o Eric estaria vindo para o Brasil, mas precisaria virar um álbum, com mais músicas."
O raciocínio ao regravar as músicas de Eric em Daniel Santiago... Plays Clapton:
DS: "Busquei deixá-las bem naturais, com uma expressão. São músicas originalmente com letra, com Eric cantando. Tentei deixar de uma maneira intimista, mas ainda expressiva. [...] Para selecionar o repertório, os critérios foram a ligação com a música e a possibilidade de ela soar bem no violão."
O convite de Eric Clapton para participação nos shows em São Paulo — e o que ele achou de Daniel Santiago Plays... Clapton:
DS: "Eric me enviou e-mail dizendo que estava vindo para o Brasil e perguntou se eu gostaria de tocar. Por causa do Simon e das regravações que ele vinha produzindo comigo, meu nome já circulava por lá. No dia do primeiro show, ele havia pedido para nos encontrarmos no hotel e tocar um pouco antes da participação. Conversamos, tocamos as três músicas e 'deu liga' na hora. Terminado o ensaio, voltei para o quarto e conversamos por e-mail como se fosse WhatsApp. Ele me disse que aquele era um momento mágico, eu falei que estava sem palavras, mas que 'aqui está a minha pequena homenagem' e enviei o álbum para ele ouvir. Foi o momento ideal para ele ouvir. Ele ouviu e escreveu que tinha adorado os arranjos, que as músicas pareciam até novas. No dia seguinte, antes do segundo show, o Doyle (Bramhall II, guitarrista de apoio de Clapton) chegou dizendo que o Eric ouviu o disco e gostou muito. Daí o Eric veio no camarim e disse de novo que tinha gostado e que até enviou para a Melia ouvir."
O raciocínio ao fazer as participações nos shows em São Paulo:
DS: "Quando tocamos juntos, vi de cara que havia uma junção legal, um tempero. Como seria algo maravilhoso para minha carreira, o pensamento foi: só de não atrapalhar já seria demais. Estar ali não é um desafio simples. Você precisa estar calmo e ter sangue frio. Não quis mostrar serviço: toquei ouvindo o que ele tocava e tentando me equalizar dentro da música. Nos espaços em quedava para fazer alguma coisa, eu preenchia com muita sutileza."
O músico brasileiro que Eric Clapton mais admira:
DS: "No camarim antes de um dos shows, o Eric perguntou: 'Daniel, você conhece João Gilberto?'. Falei que sim, ele perguntou se eu sabia tocar 'Estate'. Eu sabia e toquei. Aí ele pediu 'Desafinado', eu toquei. Ele adora João Gilberto, falou isso para mim com todas as letras. A esposa, as filhas... toda a família gosta muito. Ele me disse que assistiu ao João Gilberto em Londres, com o Simon Climie inclusive. Acho que eles até pleitearam a participação dele em alguma edição do Crossroads Guitar Festival, mas acho que o João Gilberto não era alguém tão fácil de acessar e pode ter sido em um momento onde ele já estava mais recluso."
O que mais atraiu a atenção de Eric Clapton e Simon Climie em seu trabalho:
DS: "O violão de nylon é um diferencial. O Simon, que também conhece minha faceta como guitarrista, já me disse isso; é o que ele quer de mim, pois isso não tem lá fora. Isso se junta à bagagem de João Gilberto, Toninho Horta, de violão brasileiro com pulso mais latino. Mas também tem o fato de minha paixão mais profunda sempre ter sido o rock'n'roll. Já tive até banda de metal, mas no final dos anos 1990 mergulhei no violão como estudante de música por estar no universo do jazz e da música brasileira. Mesmo assim, nunca deixei de ouvir rock'n'roll, é o que mais ouço. Então, consigo fazer uma mistura que não é forçada do violão brasileiro com o rock."
O que Daniel Santiago descobriu ao explorar a obra de Eric Clapton:
DS: "Eric tem todas as grandes qualidades de um músico. É um cara criativo, que nunca ficou parado, que tem grande abertura musical. A música dele é rica em harmonia e melodia. Ele tem uma relação com a música a ponto de entender que a música é maior que o músico. Ele tem uma força sem precisar exagerar. Mais recentemente estava ouvindo 'Badge', do Cream, e ele estava tocando pra caramba, mas nunca é exagerado. E além de tudo isso, ainda tem uma vantagem: ele é um grande cantor. Tendo 79 anos de idade, ele faz um show como o que nós vimos no Brasil. Tudo aquilo sem fone de retorno in-ear: ele usa caixas de retorno no som e mesmo assim consegue ter uma afinação maravilhosa. Ele traz todos os elementos de um grande músico."
Alguns destaques do repertório de Daniel Santiago Plays... Clapton, comentados pelo próprio Daniel (clique nos nomes das músicas para ouvi-las):
— "Change the World" | DS:"Ouvi muito essa música durante a pandemia, pois transmitia um sentimento de esperança. Tentei tocar a melodia de uma forma que pudesse ser compreendida, mas aproveitei algo que o Simon e até o Eric destacam, que é o meu background do violão brasileiro com esse ritmo que não para. É como se tivesse um instrumento de percussão junto. Tentei, então, trazer para esse lado de um violão bem rítmico, com pulso."
— "My Father's Eyes" | DS:"Amo essa música, que me remete a um tempo onde me reaproximei da obra do Eric, no final dos anos 1990. Também traz um ritmo, como se tivesse uma bateria implícita, mas a questão harmônica e melódica dela é maior do que a 'Change the World'. Também tem muito a ver com minha formação com a música mineira, com influência de Toninho Horta. Então, fui para um lado de um violão mineiro. Alguém até comentou: 'você deu uma mineirada no Eric', mas essas informações pertencem à música. Eu só abri uma gavetinha dela."
— "Cocaine" | DS:"Essa foi uma das que ficaram mais experimentais. O Simon sugeriu 'Cocaine' e eu mandei para ele uma versão tocando o riff de guitarra e a melodia junto. Mas ele disse: 'acho que não é isso, não está com a cara do Daniel Santiago'. Então, ele me enviou uma gravação, só para eu sacar o conceito, do Eric Gales tocando o final de 'Layla', onde ele faz um improviso em cima daquela melodia. Então eu entendi e fiz uma espécie de desconstrução de 'Cocaine'. Não precisava estar fiel à versão original, que é icônica. Um amigo comentou que ficou parecendo com um afrosamba. Como é uma música muito modal, vira quase um mantra, então tentei desconstruir e intercalar a melodia dela com alguns fraseados e usei muita corda solta."
— "Circus" | DS:"Vou fazer um paralelo maluco, mas essa música tem um elemento rural, entende? Talvez até um blues rural, ou um rural brasileiro, com viola. Esse som de interior, sabe? Então fui um pouco para esse lado, com muito arpejo, às vezes terças e sextas. Há ainda um elemento de dramaticidade quando você se lembra da letra. Tentei chegar à essência da música, como se fosse a 'pedra bruta' da composição."
— "Wonderful Tonight" | DS:"O fato de ser uma música tão famosa não foi uma questão que intimidasse para mexer nela. É uma música muito bonita e também muito simples. É como dizem os grandes chefs na culinária: se você tem um bom ingrediente, precisa apenas deixá-lo aparecer no lugar certo. Não mudei a harmonia, apenas carreguei a sonoridade do violão de nylon, que traz essa sensação quase rural."
Próximos projetos de Daniel Santiago:
DS: "Lancei no começo do ano o single 'It's Time to Follow' (parceria com a cantora Marina Marchi), onde eu toco guitarra, com uma pegada bem synth, anos 1980. Já no violão, em novembro, vou fazer um disco lá em Berlim com o Kurt Rosenwinkel, só com músicas dele. Aí vai para outro universo, do jazz, mas com um violão quase solo, erudito. No Brasil, tenho feito shows, como na edição passada do C6 Fest em São Paulo e no Blue Note tanto de São Paulo quanto no Rio de Janeiro."
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