Mais do que swing, ele tinha swagger. O balanço era inerente à figura de Wilson Simonal, à sua postura perante o público. O swagger era algo mais - arrogância, essa certeza, nascida da autoestima, de que era o melhor, o mais gostoso. Fabrício Boliveira não se parece nem um pouco com Simonal, mas, com treino, adquiriu seu balanço, aprendeu a dublá-lo com perfeição nas canções. Já o swagger é coisa dele. Numa temporada nos EUA, era o que as pessoas lhe diziam. O swing atrai o público, o swagger faz inimigos. Simonal fez muitos, em sua vida e carreira.
Numa cena fictícia de Simonal - que estreia nesta quinta, 8, nos cinemas, quase um ano depois de passar no Festival de Gramado -, o protagonista, Boliveira, conversa com Elis Regina, interpretada por Lilian Menezes. Ele está sob suspeita no meio artístico, acusado de ligação com o porão da ditadura. Elis foi forçada a cantar na Olimpíada do Exército. Ela diz que isso vai passar, ele retruca, amargo: "Você se esquece de que sou negro." Um negro muito bem-sucedido, que chegou ao topo e trabalhou, trabalhou para ter fon-fon. Nada que não possa ser destruído. Para Boliveira, é um caso claro de racismo.
"No livro dele de memórias, Ronaldo Bôscoli dedica um capítulo a Simonal e diz que foi o maior caso de racismo da MPB. Ele (Simonal) podia ser arrogante, e isso incomodava as pessoas. Pisou em falso no episódio do contador, mas foi vítima do que hoje claramente se chama de fake news. Daí a importância do filme, que ultrapassa o resgate do grande artista. Racismo, fake news. O filme chega para promover um debate necessário."
Na entrevista ao lado, o diretor conta por que quis contar a história, e explica sua opção pelos chamados planos-sequência. Como montador de Nise - No Coração da Loucura, de Roberto Berliner, Leonardo Domingues viu o material bruto que lhe mostrou todo o extraordinário potencial de Boliveira como ator. "A ideia nunca foi julgar. Nem herói nem traidor, apenas humano. A vida de Simonal foi exemplar como tragédia brasileira, na ascensão e na queda, e Boliveira sacou isso. Tivemos momentos de briga, de tensão, mas tiro meu chapéu, porque ele foi fundo."
Sua adesão ao personagem foi total, idem a de Isis Valverde, que faz a mulher do artista, Tereza. Isis e Boliveira já estiveram juntos no vigoroso Faroeste Caboclo, de René Sampaio. Estarão de novo na próxima novela das 8 - ela, como protagonista, como uma enfermeira; ele, numa participação especial. Isis jogou-se com intensidade nessa Teresa apaixonada que vê o amado amante ser destruído, e autodestruir-se.
"Ela era bipolar e, naquela época, ninguém sabia. Seu temperamento oscilava. Fui entrando na personagem de forma intuitiva, mostrando reações que não parecem consistentes, mas fazem sentido. Um dia, do nada, me deu uma dor de cabeça terrível no set. Max (filho de Wilson e Tereza) cantou a bola - 'Mamãe tinha enxaqueca, sofria muito.' Não sabia, mas, tentando captar a complexidade dessa mulher, emulei até isso."
Como dramatização de um personagem controverso - Simonal foi acusado de dedo-duro; seria informante da ditadura no meio artístico e a carreira ruiu por isso -, o filme pode e deve reabrir discussões. A controvérsia acompanhou o artista e o filme abre-se com um elaborado plano-sequência, na frustrada tentativa de reerguimento de Simonal com um show que não estourou. Segue-se o relato em flash-back, que tem sempre a dimensão de uma exumação.
Estreante, o diretor Leonardo Domingues dificilmente conseguirá unanimidade com sua abordagem, mas o filme já nasceu clássico, na forma, por duas ou três cenas antológicas e excepcionais. Você é capaz de jurar que Boliveira canta. Ele tem o swing, o swagger.
Ninguém melhor do que Max de Castro, filho de Simonal, para avalizar o trabalho de Boliveira - "Eu ouvi, há 20 anos, numa reunião, de uma pessoa que seria impossível o resgate do Simonal. É uma coisa impossível, jamais vai acontecer, me disseram. Então, é bacana ver isso acontecer, saber que a gente consegue, de vez em quando, na vida, realizar o impossível. Muito disso deve-se ao Fabrício. Simonal é um personagem rico, mas muito difícil de fazer, porque é muito completo, e cheio de nuances. O Fabrício tem um ponto a favor: é que acho que ele não tem nenhuma semelhança física, tirando o fato de ser negro e magro. A altura é diferente, ele é baiano, Simonal era carioca, e aí você vê o trabalho extraordinário que ele fez, a preparação do Sérgio Pena também a gente não pode deixar de mencionar, porque realmente foi um trabalho de muita sensibilidade, incrível, sem essa coisa da imitação. E vou contar - acho o Fabrício muito mais parecido com o meu pai nas cenas do dia a dia, o jeito que ele falava com a minha mãe, do que no palco. Eu, como conheço bem o acervo que existe do Simonal em imagens e eu convivi com Simonal por 28 anos e, desses 28 anos, sei lá, 20 diariamente, então sei o que estou falando".
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PRESTE ATENÇÃO NESSES DETALHES DO FILME
1. O plano-sequência da cena em que Simonal, no auditório da Record, em São Paulo, rege o público na performance de Meu Limão, Meu Limoeiro. A câmera, grudada em Fabrício Boliveira, pega Simonal quando ele sai do palco, acompanha-o nos corredores da empresa até a rua, quando vai ao bar do lado, e o segue de volta ao teatro, onde a multidão segue cantando. Tecnicamente, é impressionante, pelo domínio que Pablo Sayão tem da sua câmera, mas não é só a técnica. É também a dramaticidade, o swing e o swagger (do ator e do personagem).
2. O plano-sequência inicial. Aqui, a direção está chamando a atenção para o glamour de um Rio que não existe mais - roupas, carros. Mas a cena também constrói uma certa ideia de suspense, porque a multidão vai para o show sem saber quem será o artista.
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ENTREVISTA
Leonardo Domingues
DIRETOR
'Filme ajuda a entender queda do artista'
Por que Simonal?
Porque o episódio é, em si, muito controverso, mas eu confesso que o desejo veio do documentário Simonal - Ninguém Sabe o Duro Que Dei, há dez anos. Embora soubesse, foi ali que vi que grande artista ele era, como chegou ao topo e como lhe puxaram o tapete. Ao ficcionalizar essa história senti que precisava construir a grandiosidade dele, até para o público poder entender sua queda mais profundamente.
Você veio da montagem. Como um montador trabalha com o plano-sequência?
Meu fotógrafo, Pablo Sayão, é da escola de Walter e Lula Carvalho. Quando lhe falei que queria cenas com plano contínuo, ele se entusiasmou e começou a me propor mais desses planos. Mas eu acho que o que me moveu foi de novo o documentário, o depoimento do Ziraldo. Ele estava na praça, encontrou o Simonal. 'Ué, você não está fazendo show?' Ele estava, mas saiu e ia voltar. Era tão genial que quis contar.
E a questão política?
É tão louca que fiz esse filme num quadro, estreei em Gramado em outro, e chego aos cinemas num Brasil que nunca imaginei. A fake news virou uma tragédia brasileira, e o filme mostra isso.