No Estado comunista caribenho, de um lado estão os que saúdam oportunidade de ver os astros ao vivo. Do outro, oposicionistas e exilados criticam "abertura fingida" e lembram repressão musical e prisões da década de 60.
Nesta sexta-feira (25/03), a banda de rock inglesa Rolling Stones dá seu esperado concerto gratuito em Havana, como parte de sua América Latina Olé Tour. Mas a apresentação também é alvo de uma polêmica que já estourou com a viagem de Mick Jagger a Cuba, para fazer contatos relativos à apresentação.
A visita de outros músicos famosos ao Estado insular caribenho em 2015 havia causado um cisma na cena musical cubana. De um lado, os que aplaudiam o fato de a população finalmente poder assistir ao vivo os astros que só conhecia do rádio e dos escassos espaços musicais no canal oficial de TV.
Do outro estavam os que interpretaram a oferta como mais uma simulação de flexibilidade do mesmo governo que, alguns anos antes, legalizara a música em inglês, a "língua do inimigo" – sem admitir que, na década de 1960, utilizara essa mesma acusação para reprimir milhares de jovens.
Uma canção dos Stones vale 14 anos de prisão
No primeiro grupo, o mítico cantor e autor cubano de 69 anos Silvio Rodríguez, ferrenho defensor do castrismo, diz que usar o argumento de que gerações de cubanos tiveram que conhecer os Stones secretamente "é exagerar a imbecilidade temporal de proibir o rock – que sem dúvida ocorreu, mas durou pouco, pelo menos oficialmente".
Ao dizer isso, Rodríguez esquece quantos colegas seus foram parar nos campos de concentração das Unidades Militares de Ajuda à Produção (Umap), simplesmente porque Fidel Castro teve a ideia de "reeducar" todos os jovens que apresentassem "modas elvis-presleyanas" ou "comportamentos estrangeirizantes".
Nesse processo, o líder comunista autorizou os comissários políticos e a polícia a recolherem e deterem, nas escolas, centros de trabalho e locais públicos, milhares de jovens cujo único crime era se vestir como seus ídolos estrangeiros ou escutar músicas em inglês. Entre as bandas proibidas, as inglesas Beatles e Rolling Stones eram as principais.
Que diria das declarações de Silvio Rodríguez o baterista e cantor Regino Barredo? Apelidado pelos amigos "el Ronco Mick", em homenagem a seu ídolo, Mick Jagger, ele escutava os hits internacionais do momento numa emissora americana. Delatado à polícia, foi detido em 1967 e condenado a cinco anos de prisão.
"Aprendi que lá não havia justiça, pois cumpri 14 anos em vez de cinco. O que vi no cárcere matou o músico que um dia eu quis ser. E ainda hoje, se ouço Paint it black, a canção que escutávamos quando me prenderam, revejo a minha vida", relatou à DW Barredo, que hoje vive no Chile.
Longe das mudanças reais e essenciais
Outro oponente do show dos Rolling Stones é Francisco González Casanova. Hoje estabelecido em Miami, ele chegou a ser alto funcionário da cultura, depois da carreira como cantor de um dos mais importantes conjuntos musicais cubanos dos anos 60 no país, o quarteto Los Cañas.
"Essa apresentação parece uma piada ruim aos ouvidos dos músicos e amantes da música de várias gerações, em especial a minha, que em fins da década de 60 estávamos chegando aos 20 anos", comentou à DW. "Esse concerto é promovido pelo mesmo regime que sequestrou a três gerações o direito de ouvir a música de sua preferência."
Isso não valia apenas para os Beatles e os Rolling Stones e para "outros grupos do assim chamado mundo imperialista, que, segundo o discurso oficial, eram 'expressões estrangeirizantes que propiciavam o diversionismo ideológico e a debilidade política de uma juventude que devia se forjar na mais renhida luta contra o capitalismo'."
A interdição de Castro também se dirigia "a todas aquelas figuras nacionais que dissentiam dos postulados comunistas do novo regime e cedo partiram para o exílio". Esse foi o caso de Celia Cruz, entre muitos outros, cita González Casanova.
"Por isso, esse concerto é simplesmente uma zombaria da consciência nacional, mais uma jogada de mascaramento para seguir enganando o mundo, aparentando flexibilização e mudanças que estão muito longe de ser reais e essenciais."
"Conheço bem essa gentalha"
O roqueiro afro-cubano X Alfonso e outros apoiadores do governo em Havana preferem passar a página, falando de um "concerto histórico" e de uma "possibilidade especial que abrirá as portas a futuras atuações de grupos internacionais em Cuba".
Numa homenagem ao recém-falecido produtor dos Beatles George Martin, durante visita recente à capital cubana, o trovador Silvio Rodríguez demonstrou ter memória convenientemente curta, mas pelo menos reconheceu: "Perdi o meu emprego como apresentador de um programa de televisão por elogiar precisamente a música que o Sr. Martin ajudava a elaborar, na época."
Gorki Ávila, diretor do Porno para Ricardo, o grupo de rock dissidente mais conhecido da ilha, é irredutível: "É uma vergonha. Primeiro, porque se sabe que o rock ainda é considerado pelo governo algo para viciados em drogas e marginais. Segundo, porque essas estrelas advogam liberdades no mundo, participam de projetos humanistas, e agora vêm, desconhecendo a realidade cubana, validar a falsa imagem de mudança que a ditadura quer oferecer."
O músico, que atua em Havana, dá um exemplo de como "o regime está preocupado que nada interrompa o seu show midiático" com esse concerto. "Apenas cheguei de Miami no aeroporto, e a polícia política me interrogou para saber se eu pretendia assistir. E fizeram o mesmo com outros artistas opositores."
Também a partir da capital cubana, em carta aberta a Mick Jagger, depois de descrever a atmosfera de repressão que viveu na juventude, o prestigiado jornalista oposicionista Luis Cino apela: "Confesso que não gosto muito da ideia que venham a Cuba. Antes de tudo, para que não deem crédito ao castrismo tardio, que finge ter mudado e busca sua readequação internacional. Creia-me, conheço bem as manhas dessa gentalha."