“Se você quer uma imagem do futuro, imagine uma bota prensando um rosto humano para sempre.” Essa frase é do livro ‘1984’, escrito pelo inglês George Orwell na década de 1940. A obra sobre distopia teria inspirado a produtora holandesa Endemol a criar o ‘Big Brother’.
Exercício de livre associação pode enxergar a tal bota como a pressão contemporânea – individual e coletiva – para se livrar do anonimato. Todos buscam mais e mais seguidores e ‘likes’.
O rosto seria de qualquer pessoa obcecada em ficar famosa para conquistar rapidamente dinheiro, aprovação em seu círculo e senso de pertencimento. Uma maneira de conseguir essa façanha é participar do ‘BBB’, o mais popular e controverso reality show da televisão brasileira.
Doutor em Ciências Sociais pela USP, o professor e escritor Paulo Niccoli Ramirez, que dá cursos na Casa do Saber, analisa o ‘Big Brother Brasil’ a pedido do blog. Na sua interpretação, o programa influencia o comportamento nas redes sociais e no cotidiano – para o mal e o bem.
Qual o impacto de acompanhar dia e noite a rotina de um reality show?
Primeiro ponto, a perda do foco em outras atividades. Vale dizer que o Big Brother tem um sistema televisivo pelo pay-per-view que permite às pessoas acompanharem 24 horas por dia o que ocorre dentro do reality show. Esse acompanhamento, quando é extenso e permanente, faz o indivíduo perder o foco em prioridades que tenha na vida. Isso traz, claro, problemas de concentração em função da curiosidade em torno da vida privada dos participantes. Outro ponto é o fato de que o Big Brother apresenta determinados padrões de beleza e consumo com a estética dos corpos de participantes e as marcas expostas no programa. O indivíduo que assiste freneticamente ao reality busca alcançar esses padrões, seja os produtos oferecidos como propagandas nas competições ou em relação aos corpos perfeitos. Isso traz de alguma forma a sensação de autoinsatisfação. O telespectador deseja alcançar um determinado patamar. Por não alcançá-lo, isso pode gerar angústia e depressão.
A alienação oferecida pelos reality shows é apenas negativa ou há algo positivo?
Na última década, o padrão do Big Brother se alterou de forma significativa. O que nós tínhamos no início desse século era um monte de participantes considerados bonitos, com corpos esbeltos, porém, com pouco protagonismo intelectual. As brigas se davam mais em função de disputas territoriais, votos, quem sai, quem fica dentro da casa. Na maioria das vezes, o que se via eram participantes que praticamente se comunicavam por meio de onomatopeias, rugidos, esse tipo de comportamento. Ao longo do tempo, isso desagradou ao público, muito em função das redes sociais, que passaram a expandir conteúdos mais intelectuais e engajados de quem assiste ao reality. O ponto de vista dos direitos humanos, por exemplo, a questão contra o racismo, contra a homofobia ou LGBTQIfobia. O programa fez uma alteração interessante, trazendo como participantes pessoas politicamente engajadas em várias causas, e isso atraiu maior atenção de um público que antes era avesso a atrações de TV desse formato. Mesmo assim, o que o Big Brother acabou fazendo é o que Jameson* assim como o Lipovetsky** chamariam de estetização da riqueza, estetização do próprio conteúdo intelectual. Há um lado mais lúdico das competições, até mesmo alienante em função do consumo, dos padrões estéticos e tudo mais. Por outro lado, vira e mexe o Big Brother apresenta algumas pautas progressistas exatamente para tentar expandir a audiência, sendo um reflexo das disputas de polarização dentro da sociedade, entre esquerda e direita, bolsonaristas e petistas. Teve um ano em que houve pessoas gritando na janela, bolsonaristas a favor de um determinado participante e o pessoal progressista a favor de outro. A gente não pode condenar 100% o Big Brother como um fenômeno alienante. Ele traz, ou pelo menos tem trazido nas últimas edições, algum nível de debate mais intelectual. Agora, vale dizer que isso é um processo típico do mercado pós-moderno, da publicidade, de introjetar dentro da perspectiva do consumo, da mercadoria, as pautas antes que estavam afastadas do consumismo. Esse fenômeno a gente chama de estetização da riqueza. Assim como o movimento hippie e até mesmo a camisa de Che Guevara foram incorporadas pelo mercado, pela estética, pela indústria de tecidos, enfim, isso acabou acontecendo também nos reality shows. O programa funciona como uma espécie de turbilhão, um buraco negro que suga todo tipo de discussão na sociedade.
(*Frederic Jameson é um filósofo e crítico literário norte-americano com foco na análise da cultura contemporânea. **O filósofo francês Gilles Lipovetsky se especializou no estudo do individualismo e dos apelos de consumo na sociedade.)
Quais as consequências de ocupar o tempo com as redes sociais e programas de TV ao invés de enfrentar questões importantes da própria vida?
Nas redes sociais é muito frequente ver jovens, adolescentes, até pessoas com uma certa idade, fazer posts a respeito dos participantes, mesmo antes do programa se iniciar. Depois, defendendo um lado ou outro, fazem comentários simplórios sobre o comportamento dos competidores. Essa atividade sugere uma desconcentração nas atividades cotidianas. Quem descreve bastante esse fenômeno é Baudrillard* num livro chamado Telemorfose, em que ele estuda os reality shows, sobretudo o Big Brother, e chama esse fenômeno de vivissecção. O que seria isso? É a banalização do cotidiano.
(*Jean Baudrillard é um filósofo e sociólogo francês, estudioso da influência das tecnologias na sociedade.)
Como identificamos essa banalização no programa da Globo?
Imagine, por exemplo, um participante do programa que acorda, vai ao banheiro, lava as mãos, vai à cozinha, pega um pão, passa manteiga, senta, dorme, faz academia, nada na piscina, toma sol... Essa é a banalização do cotidiano assistida pelo pay-per-view ou na versão editada. Isso traz um impacto relevante na vida social porque as redes sociais reproduzem esse fenômeno. O que ocorre no Big Brother se reflete no dia a dia dos indivíduos. As pessoas vão em restaurante, tiram fotos do prato de comida. Chegam na faculdade, fazem uma foto ali. Passam a banalizar o cotidiano e ele se torna uma repetição infernal de atos banais, essa é a ideia central. Uma futilização, um esvaziamento do comportamento humano. A gente vive uma nova era da humanidade, graças às tecnologias, chamada de império do ego, império do ‘eu’, uma fase narcisista em que o que predomina é a tentativa de autoexposição do sujeito, uma perda da privacidade. Essa é uma discussão que vai passar pelo Bauman*, porque a grande conquista da burguesia no século XVIII foi a individualidade e a privacidade, e hoje isso está se perdendo graças a esses reality shows. Há câmeras espalhadas por todo lado, então, há o fenômeno da vivissecção. Qualquer tipo de comportamento se tornou visível pelas câmeras que estão presentes de todas as formas. A consequência disso é que o comportamento humano nas redes sociais segue um pouco dessa doutrina do Big Brother em que as mínimas ações são expostas, valorizando selfies, no sentido puro do termo, ou seja, a supervalorização do ‘eu’. Os indivíduos se tornam cada vez mais individualistas, perdendo a sua individualidade. O foco está cada vez mais nas questões pessoais, egoístas.
(*Sociólogo e filósofo polonês, Zygmunt Bauman escreveu a respeito do enfraquecimento nas interações humanas; sua teoria sobre ‘relações líquidas’ é bastante conhecida.)
Por que sentimos tanto interesse pela vida de estranhos e famosos?
A sociedade valoriza muito o ego, o ‘eu’, o individualismo. As redes sociais criaram um novo tipo de cultura, a do extremo individualismo. Cito outro conceito fundamental, escrito pelo Guy Debord* apenas analisando TV e cinema, revistas. Com o aprimoramento dos meios de comunicação, temos hoje uma sociedade de espetáculo, intermediada mais por imagens de coisas, cada vez menos por relações sociais. Isso se volta para um extremo individualismo e uma apatia generalizada diante dos problemas da sociedade. Esse tipo de comportamento é uma construção que se volta para o consumo e o consumo cria a ilusão de que a forma como você se veste, por exemplo, é extremamente relevante a ponto de criar identidade social, cultural, deixando de lado os problemas coletivos. Criou-se um novo tipo de cultura a partir dos reality shows, sobretudo o Big Brother, com impacto nas redes sociais e no cotidiano das pessoas de forma permanente.
(*Francês, Guy Debord foi um filósofo ligado ao cinema que criticou a espetaculização da sociedade, comportamentos e estilos de vida.)
Qual a influência direta dos realities?
O programa oferece a possibilidade de ilustres desconhecidos se tornarem pessoas conhecidas e relevantes. A partir do momento em que a privacidade dentro do Big Brother é superexposta e as redes sociais também permitem esse fenômeno por meio de fotos e vídeos pessoais que passam a viralizar por aí, o grande impacto é que aquela ideia de que todo mundo queria ter 15 minutos de fama*, até antes da internet, deixa de ser um simples desejo e se torna uma possibilidade iminente na vida da pessoa. Os indivíduos passam a sonhar em serem artistas ou terem visibilidade para ganhar dinheiro, seja lá com que for. Esse é um fenômeno que atravessa o império do ego, essa era que o Lipovetsky vai chamar de era transestética. Ele define esses indivíduos que estão nas redes sociais de capitalistas artistas, já que é uma mistura de redes sociais com consumo e apresentação do ego, do ‘eu’, da individualidade. Isso cria um processo de despolitização, uma apatia generalizada na qual a banalização da vida passa a ser superexposta nas redes sociais. Tudo isso graças ao Big Brother.
(*Em 1968, o multiartista norte-americano Andy Warhol profetizou que “no futuro, todos terão 15 minutos de fama”.)
A mídia é a grande culpada pela adesão das pessoas à banalização da vida?
Não podemos condenar os meios de comunicação por si só. É mais ou menos como se a gente criticasse a existência da escrita. Claro que você pode não gostar de alguns livros, mas ninguém é contra a escrita. O mesmo vale em relação à roda. Você pode ser contra automóvel porque polui, baseado em combustíveis fósseis, mas ninguém é contra a roda. Assim como eu posso não gostar de um determinado prato de comida, mas ninguém é contra o domínio do fogo ou a existência do fogão. Então o problema não está exatamente nos meios de comunicação, mas como são usados e com quais fins ideológicos. Pode ser que o Big Brother também traga um papel pedagógico, não a ponto de transformar a sociedade, mas um mínimo de engajamento crítico. A grande questão é que essas mesmas redes sociais influenciadas por reality shows também são o foco daquilo que Walter Benjamin* chamava de politização da arte. Ou seja, quando a gente usa os meios de comunicação para o senso crítico e uma postura mais engajada, uma aquisição cultural, pode ser que haja o caminho também da politização da arte. Mesmo a dancinha do TikTok pode trazer alguns elementos reflexivos. O problema está em outro conceito, o contrário da politização da arte, que é a estetização da política. É daí que vem todo o conceito da sociedade de espetáculos, que é quando, de fato, os meios de comunicação são usados para fins alienantes. Eles podem servir para reflexão. Infelizmente, são pouco usados nesse sentido. Na maioria das vezes, é para a alienação. Tudo depende do usuário e de quem assiste também. Nada impede que o indivíduo assista ao Big Brother com senso crítico, percebendo a montagem, a edição, mostrando muitas vezes que os diálogos podem ser fúteis ou pode ser que haja alguma lição importante, seja o que não fazer, um comportamento inadequado, até mesmo a valorização de pessoas que não tinham tanta presença nos meios de comunicação. População negra e LGBTs, por exemplo. Então é tudo muito contraditório, dialético. Esses programas podem ter um papel reflexivo, ainda que isso se sobressaia muito pouco.
(*Filósofo e sociólogo alemão, Walter Benjamin teorizou a respeito da simbiose entre sociedade, política e arte.)