Alguém que já sentiu na própria pele as mesmas dores e medos relatados por Karol Conká e Lumena Aleluia possui autoridade para avaliar as declarações e atitudes com alto teor de agressividade das duas participantes da 21ª edição do ‘Big Brother Brasil’.
Por isso, o blog ouviu a psicanalista, doutoranda em Antropologia e fundadora do Coletivo Di Jejê Jaqueline Conceição. No dia a dia, ela também enfrenta o racismo, o machismo e críticas ao ativismo.
Karol Conká tem comportamento considerado abusivo, praticando o que está sendo chamado de terror psicológico contra outros participantes. Foi ‘cancelada’. Sua imagem pública e carreira sofreram danos incalculáveis. Isso pode afetar de maneira geral o ativismo das mulheres negras?
A questão da Conká é delicada, porque o que vimos foi uma pessoa com personalidade abusiva e violenta, e isso não está ligado ao fato de ser militante do feminismo negro. Porém, em muitos momentos, ela usou da retórica do feminismo negro para agredir psicologicamente o Lucas e a Juliette. É lamentável todos os desdobramentos que isso teve na carreira dela, mas isso faz parte do tão falado jogo do ‘BBB’: a exposição de pessoas e da sua privacidade. Nenhuma outra edição do programa foi tão assertiva em cumprir essa missão. Espero que as pessoas não associem o feminismo negro e as feministas negras com a postura da Conká.
A autora de novelas Gloria Perez, que faz o chamado merchandising social em suas tramas, postou mensagem baseada no comportamento de Lumena e Karol: “Esse ‘BBB’ vem demonstrando que não tem maneira mais eficiente de enfraquecer uma causa do que defendê-la assim, de modo a soar chata e agressiva”. Como interpreta esse posicionamento?
Há só um ponto importante nisso: muitas vezes ser militante é ser chato e até agressivo. A questão é que estão confundindo a personalidade das pessoas negras na casa com o que é ser militante. São coisas distintas. Conká é abusiva e agressiva, e Lumena é chata. Ponto. Elas não são assim porque são militantes. Elas são assim e militantes, e usam da militância para afirmar suas personalidades. Isso não tem nada a ver com ser militante. É importante diferenciar isso. As pessoas são chatas, agressivas, abusivas, afetuosas, companheiras, independentemente de serem brancas ou negras. Exacerbar o traço da personalidade delas, demonizando as duas, é um traço do racismo preso no inconsciente coletivo, porque o racismo espera das pessoas negras perfeição e docilidade. Mas pessoas negras têm temperamentos e personalidades próprias, como as pessoas brancas. Acredito que o Brasil está espantado com o fato de pessoas negras terem personalidades diferentes do imaginário social, de que o negro é sempre sorridente, afetuoso e brincalhão. Aliás, essa foi a imagem que a Conká construiu para ser aceita no mundo da branquitude: a da negra politizada, feliz, acolhedora e brincalhona.
Antes de começar, o ‘BBB21’ gerou imensurável expectativa por apresentar número recorde de competidores negros. Mas, até agora, os discursos antirracistas foram abafados pela guerra de nervos e as atitudes consideradas abusivas entre alguns participantes negros. Essa superexposição pode ser prejudicial à causa?
Aqui há um equívoco sobre o que é a luta antirracista. Entende-se que está pautada na ideia de temas específicos, como o genocídio da população negra. Os jornais e as revistas estão há dias falando excessivamente sobre essa tensão racial, e o debate está na boca do povo, e isso é a luta antirracista, trazer o debate racial de forma ampla para a sociedade. Então, não sei se era a intenção da equipe do programa fazer isso, mas, de novo, o racismo está na sala de estar da família brasileira, e essa é a parte mais importante, porque vivemos numa sociedade que ignora a diversidade racial do Brasil e sequer reconhece que pessoas negras são pessoas complexas e diferentes entre si. Agora isso está em rede nacional.
Esse ‘BBB21’ suscita discussão pública a respeito de saúde mental de maneira geral e especificamente entre a população negra. A senhora acredita que os negros, por conta dos sofrimentos impostos pelo racismo, precisam de mais suporte psicoterápico do que a população branca?
Sim, muitos estudos e pesquisadores do campo da saúde mental apontam sobre isso, o fato de que o racismo cria um tipo de sofrimento psíquico específico. O problema é que no Brasil a maior parte dos psicólogos e psicanalistas não tem preparo teórico para lidar com essa questão. Muitos psicanalistas acham que o racismo é um delírio infantil de pessoas negras que sofrem com mania de perseguição. Sabemos que é algo real, imerso no inconsciente de todo brasileiro, seja ele negro ou branco. Seria fundamental que pessoas negras pudessem ter apoio para lidar com essa questão tão central que é o racismo.
A psicanálise pode tornar uma pessoa negra mais resistente ao racismo e com maior autoestima?
Sim, tenho acompanhado na clínica o quanto a abordagem afrosistêmica de uma escuta que entende as demandas raciais dos indivíduos negros potencializa a qualidade da saúde mental dessas pessoas. O quanto isso as ajuda a elaborar o racismo cotidiano e se sentir mais confiantes e adaptadas às suas vidas. Mas, muitos dos clientes que chegam até a minha clínica vieram de outros profissionais, a maioria profissionais brancos, que não conseguiram manejar as questões advindas do racismo, ocasionando mais tensões e traumas. Temos um problema muito sério no Brasil: estamos em um País marcadamente racializado, fortemente racista, onde as escolas de formação em psicanálise sequer discutem essa temática como obrigatória na formação de psicanalistas. Isso é inadmissível. No ano passado, criamos no Coletivo Di Jejê, em parceria com o Instituto IONENE de estudos psicanalíticos, o primeiro programa de formação em psicanálise sob uma perspectiva afrosistêmica, onde a questão racial é o centro da formação teórica dos psicanalistas. Nesse ano, iniciamos um programa de doação de bolsas de estudo para contemplar número maior de profissionais negros na formação que desenvolvemos, a fim de que seja possível qualificar o atendimento da saúde mental da população negra no Brasil. Inclusive, convido os leitores a apoiarem o programa doando bolsas de estudo. Para isso, basta acessar nosso site (coletivodijeje.com.br) e fazer a doação de qualquer valor ou doar uma bolsa de estudo que contempla os 8 módulos em 10 meses de formação. Formar profissionais da saúde mental capacitados para lidar com o racismo pode impactar a qualidade de vida da população negra no Brasil.
O processo psicanalítico pode ajudar um racista a se desconstruir se essa for a intenção dele?
A psicanálise possibilita que o indivíduo aprenda mais sobre si, e aprenda a lidar com suas questões pessoais. O racismo não é só uma escolha pessoal, é um pacto coletivo que beneficia pessoas brancas. O indivíduo pode sim se desconstruir, mas sem que a sociedade mude não haverá o fim do racismo.
Em tempo: a professora Jaqueline Conceição, que também é consultora da ONU para questões de racialidade e gênero, está com o curso on-line ‘Psicanálise e Racismo - Para conhecer e entender as questões raciais’, na plataforma digital da Casa do Saber. Entre as questões abordadas estão a experiência de negros e negras na terapia e a influência da brancura no inconsciente. Mais informações: casadosaber.com.br.