A queda de um único avião provoca comoção mundial. Imagine 285 Airbus A380 (a maior aeronave em atividade) terem despencado em solo brasileiro desde março. A média seria superior a 1 acidente aéreo por dia. Essa comparação se tornará real entre os dias 7 e 9 deste mês, quando o País atingirá a marca de 150 mil pessoas mortas por covid-19.
O número impressiona, assusta, preocupa — e não vai parar de subir até a maior parte da população ser imunizada com uma vacina eficiente. O telejornalismo acompanha e informa essa contagem tétrica diariamente, ainda que tenha reduzido o espaço dedicado às notícias sobre a pandemia. Em algumas edições, o ‘Jornal Nacional’ ocupou 90% do tempo falando do novo coronavírus. Hoje, o assunto não preenche mais do que 10 minutos a cada noite.
O blog apurou que a edição do ‘JN’ no dia em que o Brasil contar 150 mil vítimas fatais da covid-19 terá reportagens especiais. O telejornal tem prestado homenagem aos mortos a cada 5 mil novos óbitos registrados pelo consórcio de imprensa.
A expectativa é de que seja exibido um balanço dos maiores erros no enfrentamento da crise de saúde no País, não apenas da parte do governo federal, mas também dos brasileiros que descumpriram recomendações básicas das autoridades sanitárias para a prevenção do contágio.
O ‘Jornal Nacional’ deverá também destacar declarações recentes de Jair Bolsonaro consideradas negacionistas em relação à letalidade do vírus. Em 8 de agosto, na edição focada nas 100 mil mortes, com 1 hora e 20 minutos de duração, o presidente foi duramente criticado no principal noticiário da Globo.
“Dois médicos de formação deixaram o cargo de ministro da Saúde porque pretendiam seguir as orientações da ciência, e o presidente Bolsonaro não concordou com essa postura deles", lembrou a âncora e editora-executiva Renata Vasconcellos.
William Bonner rememorou frases do chefe do Executivo ao comentar a pandemia, com o termo "gripezinha", a ironia "não sou coveiro" e a resposta "e daí?" ao ser questionado por um jornalista a respeito dos primeiros 5 mil mortos por covid-19.
"Agora o presidente repete que a pandemia é uma chuva e que todos vão se molhar, ou que a morte é o destino de todos nós e que temos de enfrentar a doença, como se fosse uma questão de coragem. Como se nada pudesse ter sido feito", disse o âncora e editor-chefe.
Em outro momento, o ‘JN’ sugeriu falta de engajamento de Bolsonaro para minimizar a tragédia e apontou possível responsabilização criminal por essa suposta negligência. "Nós já mostramos o que diz o artigo 196 (da Constituição). É dever das autoridades que governam o País implementar políticas que visem a reduzir o risco de doenças. E a pergunta que se põe é: o presidente da República cumpriu esse dever?”, questionou Renata.
“Entre os governadores e prefeitos, quem cumpriu? Quem não cumpriu? Mais cedo ou mais tarde o Brasil vai precisar de resposta para essas perguntas. É assim nas democracias e nas repúblicas: todos temos direitos e deveres, e onde ninguém está acima da lei." Bonner completou: “Essa resposta vai ter que ser dada em respeito às famílias de mais de 100 mil brasileiros mortos”.
No dia seguinte, Jair Bolsonaro contra-atacou no Facebook. "Muitos gestores e profissionais de saúde fizeram de tudo pelas vidas do próximo, diferentemente daquela grande rede de TV que só espalhou o pânico na população e a discórdia entre os Poderes", protestou. "No mais, essa mesma rede de TV desdenhou, debochou e desestimulou o uso da Hidroxicloroquina que, mesmo não tendo ainda comprovação científica, salvou a minha vida e, como relatos, a de milhares de brasileiros.”
O presidente sugeriu que o jornalismo da Globo promoveu “desinformação". “O tempo e a ciência nos mostrarão que o uso político da Covid por essa TV trouxe-nos mortes que poderiam ter sido evitadas", escreveu. “De forma covarde e desrespeitosa aos 100 mil brasileiros mortos, essa TV festejou essa data no dia de ontem, como uma verdadeira final da Copa do Mundo, culpando o Presidente da República por todos os óbitos.”
Ao final do post, ele voltou a afirmar que a cobertura crítica do jornalismo da Globo em relação a ele e seu governo seria retaliação pela perda de verba publicitária da Presidência, dos ministérios e das estatais. “Estão com saudades daqueles governantes que sempre os colocavam como prioridade ao fazer o Orçamento da União, mesmo sugando recursos da saúde e educação.”
A pandemia de covid-19 tem alimentado, dia após dia, a guerra ‘BolsoGlobo’, iniciada antes mesmo de Bolsonaro tomar posse. Dizendo-se “perseguido” pelos veículos jornalísticos do Grupo Globo, pertencente à família Marinho, o presidente cortou 60% da verba do governo ao canal líder em audiência.
Sem demonstrar abalo, a TV Globo mantém o tom incisivo ao noticiar sobre o presidente e sua gestão. Tudo indica que a triste marca de 150 mortos pela covid-19 vai recrudescer a hostilidade entre o homem mais poderoso do Brasil e a emissora mais influente do País.