Em 2020, elas decretaram: "O futuro é uma mulher preta"

A televisão brasileira teve protagonismo feminino e negro no ano em que o antirracismo mobilizou o planeta

31 dez 2020 - 10h08
(atualizado às 10h09)

"Ah, comigo o mundo vai modificar-se. Não gosto do mundo como ele é", escreveu Carolina Maria de Jesus em seu diário. Mulher, negra, pobre e com pouco estudo, ela foi de catadora de papéis e empregada doméstica a uma das mais importantes escritoras e poetas do Brasil. Seu primeiro livro, ‘Quarto de Despejo’, publicado em 1960, é um desabafo, uma obra sociológica e um testamento para a História.

Acima, Jojo Todynho e Aline Midlej; abaixo, Jéssica Ellen e Thelma Assis: novos ícones do poder da mulher negra brasileira
Acima, Jojo Todynho e Aline Midlej; abaixo, Jéssica Ellen e Thelma Assis: novos ícones do poder da mulher negra brasileira
Foto: Reprodução

Ela não mudou o mundo, mas sua obra inspirou outras pessoas a engendrar transformações necessárias rumo à igualdade racial, de gênero e de oportunidades. As mulheres pretas que hoje se destacam na mídia por seu talento, formação, opinião e ativismo são todas filhas de Carolina Maria de Jesus. Vivem a ascensão de direitos sonhada e caligrafada pela autora favelada que nunca quis se casar para não se submeter a homem algum.

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Poderia ter sido de sua autoria a frase 'O futuro é uma mulher preta' pintada no asfalto da Avenida Nove de Julho, em São Paulo, pelo coletivo Nós Artivistas em manifestação de repúdio à violência sistêmica contra negros no Brasil e em prol do movimento dos direitos civis. Em 2020, várias mulheres negras - a maioria delas de origem humilde - se consolidaram na TV e na mídia em geral. Os dois reality shows mais assistidos no País foram vencidos por esse perfil.

Thelma Assis superou os oponentes que a viam como "planta" no 'Big Brother Brasil 20'. Subestimada e, às vezes, desrespeitada no confinamento, soube manter o equilíbrio e a coerência. Não forjou personagem popularesca tampouco apelou a jogo desleal. Simbólico ver uma médica negra triunfar no programa de maior repercussão da Globo. Adotada com poucos dias de vida, ela enfrentou racismo na faculdade e após se graduar, por quem não a via como uma doutora. Hoje, é uma influenciadora relevante em um País onde a mulher preta era tradicionalmente invisibilizada na publicidade.

Na RecordTV, Jojo Todynho faturou 'A Fazenda 12' com overdose de autenticidade. Sua trajetória na atração foi marcada por resenhas a respeito de preconceito racial, machismo, gordofobia e resgate da autoestima. Tal vitória representa maior aceitação do subúrbio carioca, da cultura do funk e da mulher fora dos opressivos padrões estéticos impostos pela sociedade. Seu biotipo, comportamento e visão de mundo representam milhões de brasileiros que até pouco tempo não tinham espaço na televisão.

Heroínas pretas são raridade na teledramaturgia do Brasil, o País mais miscigenado do planeta. Este ano foi marcado pela atuação lírica e consistente de Jéssica Ellen em 'Amor de Mãe', novela das 21h interrompida em março por conta da pandemia de covid-19 e com retomada prevista para breve. Sua personagem, a professora Camila, personifica a ética, o valor da educação e a significância da escola pública. Idealista, ela acredita na juventude e em um mundo melhor a partir do trabalho de cada cidadão em sintonia com um Estado democrático e eficiente. Parece utopia no Brasil desconexo de hoje, mas espelha a esperança de muita gente.

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A frase pintada em avenida de São Paulo: reação contra o racismo e o machismo
Foto: Reprodução

Foi justamente por meio da instrução e da busca incansável por conhecimento que Aline Midlej fez-se a jornalista de TV mais proeminente deste ano. Passou a figurar como uma das principais âncoras da GloboNews, onde se projeta pelo domínio do improviso no 'ao vivo', a defesa de pautas sociais e opiniões sensatas. Em algumas ocasiões, relatou episódios de racismo estrutural que a abalaram e, ao mesmo tempo, produziram mais força interior para reagir. Sua presença no comando de telejornais suscita representatividade imensurável. Uma inspiração a jovens profissionais do jornalismo e futuros comunicadores que se enxergam nela.

Em um de seus poemas, Carolina Maria de Jesus - a doméstica negra que se educou na biblioteca particular de um dos patrões - registrou o Brasil que queria para si e para os seus.

"Adeus! Adeus, eu vou morrer!

E deixo esses versos ao meu país 

Se é que temos o direito de renascer 

Quero um lugar, onde o preto é feliz".

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