“Um político divide os seres humanos em duas classes: instrumentos e inimigos”, decretou o filósofo, escritor e poeta alemão Friedrich Nietzsche. Um governante sem pelo menos um grande inimigo na mídia não tem a quem eventualmente culpar por suas falhas e se vitimizar no papel de perseguido.
Nos Estados Unidos, Donald Trump elegeu a progressista CNN como rival. Na Rússia, Vladimir Putin se indispôs com a independente TVS a ponto de mandar fechá-la. Na Venezuela, Hugo Chávez (1954-2013) não renovou a concessão de alguns canais, incluindo o mais antigo em atividade na época, RCTV, por considerá-los golpistas.
No Brasil de 2021, Jair Bolsonaro intensifica os ataques contra a Globo. Frequentemente xinga os âncoras do ‘Jornal Nacional’ William Bonner e Renata Vasconcellos. Mais de uma vez, acenou com a possibilidade de não assinar a renovação da licença da emissora, a vencer em outubro de 2022. Insinua que a empresa e a família Marinho cometeram crimes de sonegação.
Na segunda-feira (15), durante passeio no litoral catarinense, o presidente deu mais um passo no front desse duelo midiático. Ao reclamar de uma restrição de compartilhamento de imagens do Facebook, ele revelou um desejo pouco republicano. “O certo é tirar de circulação — não vou fazer isso, porque sou democrata — tirar de circulação Globo, Folha de S. Paulo, Estadão, (O) Antagonista, são fábricas de fake news”, disse em vídeo viralizado na internet. Ele se referiu à Globo ou a ‘O Globo’? Houve quem entendeu ambos.
Sem a TV Globo, Bolsonaro iria atacar a quem? Os donos da RecordTV, SBT e RedeTV! estão alinhados com o presidente. A Band o critica, mas a repercussão é tímida. O hipotético desaparecimento da maior e mais vista TV do País deixaria Bolsonaro brigando sozinho. Hoje, a Globo faz o papel informal de oposição ao governo, já que o titular da função, a esquerda, bate cabeça em disputa interna por poder.
Toda vez que o presidente fala mal da Globo diante de câmeras de TV, para os celulares de apoiadores ou nas redes sociais, ele ganha publicidade espontânea: grandes veículos de comunicação repercutem essa guerra particular deflagrada muito antes da eleição de 2018. Prova disso foi a foto dele segurando uma placa onde se lia ‘Globo Lixo’, semana passada. Viralizou. Essa visibilidade é valiosa pois alimenta o ânimo da militância e renova a imagem provocadora do presidente.
O chefe do Executivo sabe que não pode dar uma canetada para se livrar da Globo. Na prática, a suspensão ou cassação da concessão pública de um canal depende de autorização de dois quintos do Congresso, onde há vários parlamentares que são donos de emissoras e retransmissoras, inclusive da Globo.
Paradoxalmente, Jair Bolsonaro declarou algumas vezes ser contra o projeto de regulamentação da mídia, uma bandeira histórica do PT, discutida ao longo dos mandatos de Lula e Dilma. A depender do grau de controle, o governo poderia limitar a liberdade de imprensa e enfraquecer grandes conglomerados de mídia, como o Grupo Globo.
Em 2019, o presidente se manifestou a respeito no Twitter. “Em meu Governo a chama da democracia será mantida sem qualquer regulamentação da mídia, aí incluída as sociais”, escreveu. Defensor do pensamento livre de qualquer censura ou dogma, Nietzsche aprovaria essa surpreendente postura liberal do conservador Bolsonaro. Será que a cúpula da Globo pode suspirar aliviada?