O brasileiro em geral sempre desprezou a cultura hispânica. Prefere consumir arte norte-americana e europeia. Esse complexo de eterno colonizado explica o fato de Walter Mercado ter sido visto por aqui como mera caricatura, útil apenas para fazer rir e como alvo de chacota. O documentário Mucho Mucho Amor, produção original da Netflix, contribui para mostrar que o astrólogo e vidente portorriquenho era muito mais do que 'aquela bicha velha plastificada' do bordão "Ligue djá" e de memes recentes da web.
Por trás de figura tão extravagante havia uma personalidade singular, capaz de ir da ingenuidade à ambição, da simplicidade ao luxo kitsch, da máxima popularidade à autorreclusão. O filme das diretoras Cristina Costantini e Kareem Tabsch acompanha os últimos meses de vida do místico. Conta um pouco de sua trajetória como ator de teatro e novelas antes de, por acaso, fazer sucesso instantâneo na televisão apresentando previsões astrológicas em performance teatral.
Ele foi um dos maiores fenômenos de audiência em TVs da América Latina e em programas voltados a hispânicos nos Estados Unidos. Os telespectadores eram hipnotizados por seus figurinos luxuosos — como esquecer aquelas capas brilhantes ao estilo super-herói? — e pelas palavras de incentivo a cada signo. Mais do que um esotérico excêntrico, Walter Mercado foi um mensageiro de esperança. Dizia exatamente o que as pessoas precisavam ouvir para se sentirem mais confiantes em relação ao futuro. Um guru de autoajuda com visual hollywoodiano.
Ainda que vaidoso ao extremo, Walter Mercado se deixa capturar pela câmera do documentário em momentos que revelam os efeitos do envelhecimento e da decadência da carreira. Na fase final das gravações, já bastante fragilizado poucos meses antes de morrer, ele experimentou um retorno triunfal aos braços dos fãs. Recebeu a merecida última homenagem, privilégio que incontáveis grandes artistas não tiveram. Ganhou até um encontro com um admirador igualmente famoso: o astro da Broadway Lin-Manuel Miranda, do premiado espetáculo Hamilton.
Honesto, o documentário aborda questões íntimas, como a aparência andrógina e a sexualidade do astrólogo. Explica-se a razão de ele nunca ter se assumido gay ou bissexual. Fica incontestável sua importância para a comunidade LGBT latina, alvo de forte homofobia. Questionado sobre amores e prazeres, o vidente desconversa: "Faço sexo com a vida". Era virgem, como sugeria a lenda? "O último deles", brinca às gargalhadas. Teve ao longo de décadas um grande homem ao seu lado, o assistente Willie Acosta, coadjuvante que rouba a cena ao humanizar o personagem principal.
Como naqueles folclóricos folhetins nos quais Mercado atuou na TV de Porto Rico, não falta ao doc a figura do vilão: o empresário ganancioso que produziu a derrocada financeira do artista e seu afastamento abrupto da mídia. O Brasil é citado algumas vezes por conta de sua relevância enquanto mercado consumidor do serviço de previsões 0900, fonte do inconfundível apelo mercantilista "Ligue djá". A única brasileira a aparecer na produção da Netflix é a apresentadora Marília Gabriela, em trecho de uma entrevista com o astrólogo no De Frente com Gabi, no SBT, em 1998.
Ainda que tenha sofrido emocionalmente e até fisicamente com reveses na carreira e na vida pessoal, Walter Mercado demonstra ter sido um homem feliz, da infância até os dias finais. No crepúsculo, contou com o carinho das sobrinhas e a fidelidade de alguns poucos amigos. Não exibia a amargura típica de astros arrancados do pedestal na velhice. Às documentaristas, assegurou conviver bem com as glórias do passado e as limitações do presente. Recusava-se apenas a revelar a idade e falar da própria morte. "Sou um corpo, mas minha alma e minha mensagem serão eternas", tergiversa em uma cena. O astrólogo pisciano morreu aos 87 anos, de falência renal, em 2 de novembro de 2019, justamente no Dia dos Mortos. Coincidência ou capricho dos astros?