O comediante pode ou não ser politicamente incorreto? Essa questão divide opiniões entre os próprios artistas do humor. Márvio Lúcio, o Carioca, contribui para o debate com performances controversas. Em março, foi duramente criticado por aparecer ao lado de Jair Bolsonaro e distribuir bananas a jornalistas, e agora suscita aversão pelo ‘blackface’ feito em paródia no reality show ‘A Fazenda’.
Satirizar a política e os políticos é quase uma missão de quem faz comédia. A crítica social por trás das piadas é tão relevante quanto os editoriais jornalísticos. O problema surge quando o artista produz graça a fim de beneficiar essa ou aquela figura pública. Deixe de ser arte contestadora e se torna ativismo ideológico-eleitoreiro. Ao aparentemente apoiar Bolsonaro na guerra particular do presidente contra a imprensa, Carioca desceu do palco e subiu no palanque.
O episódio do ‘empretecimento’ com maquiagem escura, prótese para alargar o nariz e peruca para interpretar o cantor Luiz Carlos, do Raça Negra, parece ter sido criado intencionalmente para incomodar e repercutir. Difícil acreditar que ninguém da produção do reality show tenha cogitado a reação odiosa de parte do público. Inúmeros casos recentes de ‘blackface’ — como o do professor de medicina em videoaula a universitários da USP — resultaram em revolta, contestação e punição exemplar baseada não apenas na ética, mas também na lei.
A velha desculpa “não tive a intenção de ofender” deixou de ser aceitável. O humor arcaico baseado em racismo, xenofobia, homofobia, machismo, gordofobia e outros condutores de preconceito passou a ser condenado e combatido no próprio meio artístico, e reprovado por parcela significativa do público que deseja rir sem fazer parte de ultraje a um alvo fácil, como sempre foram o negro, o gay, a mulher, o gordo, o estrangeiro etc. O bufão que deprecia perde a piada.
Carioca está entre os melhores comediantes do País. Suas imitações de famosos como Dilma Rousseff e Boris Casoy são insuperáveis. Não há problema algum em satirizar Bolsonaro, porém, ele precisa verificar a ambiguidade do contexto para não ser visto como um humorista a serviço de um político, assim como deveria evitar a associação de sua imagem e seu talento com práticas execráveis, como o ‘blackface’, usado antigamente de maneira pejorativa por atores brancos para zombar de negros. Não se trata de autocensura, e sim de bom senso e, no espectro profissional, de preservação de sua bem-sucedida carreira.