Em 2002, ao se tornar a primeira negra a vencer a categoria Melhor Atriz do Oscar, Halle Berry destacou em seu discurso a importância da visibilidade e da representatividade. “Esse momento é tão maior do que eu”, disse, chorando de emoção. “É para cada mulher negra sem rosto e sem nome que agora tem uma chance por causa da porta que foi aberta esta noite.”
Depois dela, somente brancas foram premiadas na categoria principal de interpretação. Mas seis negras ganharam como Melhor Atriz Coadjuvante — avanço inquestionável na maior honraria de Hollywood. Evolução que ainda não chegou na televisão brasileira, onde pretas e pretos têm poucas oportunidades relevantes.
Em um País com mais de 50% da população formados por negros e pardos, a teledramaturgia é predominantemente branca e há perceptível resistência quando um negro ou negra assume o protagonismo de uma novela ou série. A convite do blog, a mestre em Educação e doutoranda em Antropologia Social Jaqueline Conceição avaliou alguns episódios relacionados ao racismo repercutidos na mídia nos últimos meses.
Depois da exibição do especial ‘Falas Negras’, na Globo, em novembro de 2019, formadores de opinião questionaram: onde estavam esses atores negros tão talentosos? Essa quase invisibilidade do negro na teledramaturgia de um País tão miscigenado pode ser definida como uma prática racista das emissoras de TV?
Na verdade, não se trata de uma prática racista de modo intencional. A questão do racismo no Brasil é mais complexa do que isso. Claro que a ausência de pessoas negras em espaços simbólicos de poder e visibilidade, como a programação da TV aberta, assistida por milhões de brasileiros, intensifica o projeto histórico de apagamento da presença negra para além dos anúncios de vaga de trabalho como doméstica ou nas manchetes sobre violência. Por outro lado, apenas ter pessoas negras em maior número na televisão não resolve o maior problema criado pelo racismo, que é a desigualdade social, essa sim, causada pela prática de excluir pessoas negras da vida social e produtiva no Brasil. Por vida produtiva, me refiro ao mercado de trabalho formal com carteira assinada e bons salários.
A atriz Zezé Motta revelou que ao fazer par romântico com Marcos Paulo na novela ‘Corpo a Corpo’, em 1984, foi alvo de incontáveis ataques racistas. Na vida real, isso ainda é comum. Por que, na sua avaliação, uma relação interracial ainda gera olhares curiosos e manifestações de reprovação?
Essa é uma pergunta delicada e muito importante. Para responder eu vou recorrer à história do Brasil. No pós-abolição, quando os africanos foram libertos, o País começou um processo que dura até hoje, que chamamos de eugenia: o Estado Brasileiro decretou através de uma política pública da saúde, incentivada pelo médico Renato Khel (1889-1974), avô da psicanalista Maria Rita Khel, um programa de embranquecimento racial brasileiro. A principal medida foi a vinda de pessoas europeias para cá, sobretudo italianos e alemães, que acreditavam na superioridade da raça branca, e o incentivo em larga escala ao casamento de mulheres negras com homens europeus. Os italianos e alemães solteiros recebiam incentivo financeiro maior para vir ao Brasil, e se tivesse filhos com uma brasileira africana ou negra, ganhavam ainda mais apoio para construir sua vida. Paralelamente, iniciou-se o processo de criminalização e extermínio dos homens negros. Leis como a da vadiagem, que prendia homens negros sem carteira de trabalho assinada — em um período histórico no qual para trabalhar em regime de contrato de trabalho era preciso ter uma profissão fabril, e para ter profissão fabril era preciso ser alfabetizado, e a população africana e negra até aquele momento não havia ainda acessado a escola, porque isso só aconteceu em larga escala a partir de 1996 — e se enviava aqueles homens negros para colônias no interior dos estados, contribuindo para o que chamamos de solidão da mulher negra. Sozinhas, as mulheres negras e africanas se viam condicionadas a casarem com homens brancos. Em 1912, essa política de saúde defendia que em 2012 o Brasil teria somente 0,03% da população negra e africana. Isso porque naquele período o índice demográfico no Brasil era de um brasileiro branco para quatro brasileiros negros e africanos. Então, os relacionamentos interraciais no Brasil representam simbolicamente toda essa história de perseguição e apagamento da presença negra e africana no País. Certamente as relações interraciais são um dos tantos tabus em nossa sociedade.
Recentemente, a rapper e apresentadora Karol Conka foi criticada nas redes sociais, inclusive por alguns que se diziam fãs, por namorar um rapaz branco. A mulher negra que se envolve com um branco é mais criticada do que um negro que se envolve com uma branca?
A crítica acontece em proporção igual. Mas, no geral, homens negros quando casam com mulheres brancas são vistos como bem-sucedidos. Já mulheres negras quando casam com homens brancos são vistas como interesseiras. Essa é a conta do machismo, um traço muito forte da sociedade brasileira.
Na Semana da Consciência Negra, o menino Roque, filho da atriz Regina Casé, declarou: “Antes era a escravidão, agora o racismo”. Na sua opinião, qual seria a ‘Lei Áurea’ contra a discriminação racial do nosso tempo?
Eu gostaria que não usássemos nunca mais o termo Lei Áurea, porque a palavra áurea remete a limpar, clarear. Essa lei pretendia limpar a consciência racial do Brasil do horror da escravidão brasileira — aqui foi um dos lugares mais perversos e violentos do mundo — e também limpar a presença negra da sociedade e cultura do País. Como eu disse, a grande presença numérica de pessoas africanas no Brasil teve impacto muito forte na própria cultura brasileira. Somos mais africanos e indígenas do que europeus, embora a elite branca, e alguns negros, tentem arduamente a se europeizar. No entanto, somos africanos em nossa essência. As leis contra a discriminação racial já existem, são duas: a lei de discriminação, injúria racial e racismo, nº 7.716, de 1989, que tipifica racismo como crime inafiançável e imprescritível, ou seja, o crime não deixa de existir, e a nº 10.639, de 2003, que obriga o ensino da cultura africana e afro-brasileira nas escolas e universidades. Pena que ambas as leis não sejam cumpridas de fato.
Campeã do ‘Big Brother Brasil 20’, a médica Thelma Assis foi a mulher que mais fez publicidade no Brasil em 2020. Podemos considerar essa exposição midiática um avanço efetivo contra o racismo?
Não, de modo algum. Representatividade não vai acabar com o racismo no Brasil. Os números de violência racial no País no ano passado foram os mais altos dos últimos 20 anos, e o trágico caso em Porto Alegre (de João Alberto Freitas, 40 anos, espancado até a morte em 19 de novembro) na rede francesa de supermercados mostra isso claramente.
Depois dos protestos antirracistas mundo afora, a maioria das emissoras de TV buscou dar mais espaço a pensadores negros, uma presença rara no vídeo até então. Qual a importância de promover acadêmicos negros, como você, e discutir o racismo com quem o sofre no dia a dia, e não somente com comentaristas brancos falando de maneira teórica?
O racismo é um problema muito grave no Brasil. Nem sequer somos capazes de calcular a profundidade do estrago que o racismo tem causado à sociedade brasileira. Muitos colegas acadêmicos têm dedicado suas vidas profissionais e pessoais à luta contra o racismo, assim como eu. Temos sólida e longa formação nesse campo de estudo, esse é um ponto relevante. Porém, uma parte importante da ideia que o racismo criou no Brasil é que o negro é incapaz de ser racional. Então, um corpo negro se portando publicamente no lugar de um pensador ou pensadora, espaço que antes era exclusivo de brancos e brancas, é um passo importante para desconstruir esse aspecto cultural do imaginário brasileiro sobre o que é ser negro. Digo até que tem muito mais valor uma mulher negra atuando publicamente como intelectual do que como modelo. A beleza negra parece ser inquestionável, já a inteligência do negro, essa sempre é colocada em dúvida.