“Ainda vou fazer o galã”, avisou Lázaro Ramos em uma entrevista, em 2006. O desejado papel chegou cinco anos depois: o ator foi escalado para viver o sedutor André em Insensato Coração, na faixa das 21h da Globo. O problema é que boa parte dos telespectadores não aceitou ver um ator negro interpretando um conquistador que levava, sem esforço, as mais belas mulheres para a cama. A imagem de homem irresistível sempre foi associada, tanto na teledramaturgia quanto na vida real, aos atores brancos de beleza explícita.
Por outro lado, o artista baiano, protagonista da série sobre inclusão racial Mister Brau ao lado da mulher, a atriz Taís Araújo, simboliza o ‘negro que deu certo’ por ter sólida carreira na TV e ser bem-sucedido financeiramente. Esse tipo de contrassenso entre o que é aceitável ou não sobre o negro, a partir da visão intolerante e limitada de relevante parcela do público, tem sido estudado e explicado por Jaqueline Conceição, doutoranda em antropologia social pela UFSC, mestre em Educação (História, Política, Sociedade) pela PUC-SP, psicanalista, fundadora do Instituto Ionene (estudos sobre psicanálise, raça e gênero) e fundadora e diretora-executiva do Coletivo Di Jejê, especializado em pesquisa sobre o feminismo negro.
No momento, ela participa de uma série de cursos sobre raça e gênero. Entre os temas dos próximos estudos estão ‘família negra’ e ‘o lugar do pardo’. No próximo dia 28, das 14h às 17h, haverá um curso gratuito a respeito de violência de gênero. [Mais informações sobre os eventos aqui]
No Brasil, quais as principais fontes de referências de identidade, comportamento e estilo para os negros em geral?
Desde os anos 80, o Movimento Negro buscou fortalecer a presença de pessoas negras na cultura, sobretudo a midiática. Movimentos como Olodum, Timbalada, Ile Ayê foram importantes para a afirmação da estética negra. Por que começo contando isso? Por que todo processo social é fruto de construções coletivas. Taís Araújo, Lázaro Ramos (filho do Bando de Teatro Olodum, que propunha a valorização da estética negra a partir do teatro), Iza, Gaby Amarantos e tantos outros nomes resultam dessa grande luta coletiva sobre a presença negra na cultura e mídia. (A filósofa) Sueli Carneiro, (a pedagoga e reitora) Nilma Lino Gomes, (a socióloga) Vilma Reis e (o advogado e professor) Silvio Almeida são pensadores importantes também, principalmente no que diz respeito a produção intelectual vinda da comunidade negra.
Na sua avaliação, a televisão e a mídia, que apresentam representatividade ínfima de diversidade racial, contribuem para a falta de maior identificação de negros com outros negros?
O grande problema é que a mídia vende a ideia que ser negro feliz é ser rico e famoso. Ao mesmo tempo, a escola oferece apenas referências de dor e sofrimento da escravidão para as crianças, e nas ruas a polícia mata e prende a juventude negra. Do ponto de vista da consciência, da forma como o sujeito produz sua compreensão do mundo, a conta não fecha. A mídia diz que ser um negro bem-sucedido é ser rico e famoso, e na vida cotidiana as crianças veem outras crianças negras morrendo em operações militares e seus pais estão desempregados. Imagina o sofrimento. A criança vê o Lázaro Ramos feliz com sua família na televisão, e na sua casa, no seu bairro, pessoas negras morrem atingidas por tiros, muitas vezes disparados pela força policial do Estado. A culpa não é do Lázaro Ramos, claro, a culpa é do sistema social que cria a falsa ideia de inclusão, sem mudar a forma como as relações raciais são produzidas no Brasil.
Como analisa a supervalorização que o brasileiro em geral dá às culturas norte-americana e europeia, em contraponto à pouca absorção da cultura da África, ainda que a maior parte da população do País tenha DNA africano?
Não se trata de supervalorização das culturas norte-americana e europeia, se trata do fato de que o que se ensina e se transmite como cultura são única e exclusivamente as culturas norte-americana e europeia. O que de fato sabemos sobre a África? O que a mídia, os meios de comunicação, a educação, a cultura nos ensinam sobre a África? Vou dar um exemplo. No filme ‘2012’, um clássico da cultura pop sobre o fim do mundo, a história fala da necessidade de preservar a Terra mediante a catástrofe que se aproxima. Cientistas indianos e norte-americanos se unem e constroem arcas, iguais à de Noé. De cada continente pegam coisas que vão servir para a reconstrução da vida pós-catástrofe. Da Europa pegam objetos de arte. Dos Estados Unidos, objetos tecnológicos como armas nucleares. Da Ásia, plantas e escritos sobre medicina milenar. Da América Latina, artefatos indígenas. Da África, apenas os animais e algumas plantas. As pessoas salvas são todas dos Estados Unidos e da Europa. Estamos falando de um filme, mas podemos falar de vários outros exemplos. O Brasil é um País com forte presença negra, mas se percebe e se projeta para o mundo como branco, em todos os sentidos. Quando falamos de pensamento branco, isso está para além do corpo branco. Está principalmente na forma de pensar, que é baseada no pensamento dos brancos da Europa e dos Estados Unidos. A beleza é a branca ou a mais próxima da branca (pessoas negras de pele clara e traços físicos como nariz fino e cabelo liso). Arte é como a arte branca, clássica, europeia. Música é bossa nova, e não funk. Agora eu pergunto: qual a cor de quem produz bossa nova, qual a cor de quem produz funk?
A cantora Anitta já foi acusada de apropriação cultural por surgir com cabelos cacheados e usar tranças africanas. O que acha desse movimento que tenta impedir o uso coletivo do estilo estético associado aos negros? Essas restrições a não-negros não podem suscitar preconceito?
Eu adoro a Anitta, e lamento muito que ela não reconheça sua negritude. Ela poderia contribuir muito para o debate sobre colorismo no Brasil, e nos ajudar a avançarmos na compreensão sobre a intensidade da presença negra no modo de vida do Brasil. Veja, toda a carreira da Anitta é construída em cima de um princípio básico da africanidade: a potência das mulheres e daquilo que seus corpos são capazes de gerar, desde a vida até a capacidade de se inventar como sujeito, como pessoa. Isso é um traço importante da carreira dela. A gente fica fixado em pensar racialidade a partir de marcadores materiais como as tranças e etc., e se esquece da parte cultural que é subjetiva, e está presente no inconsciente coletivo do brasileiro. Por outro lado, há uma ideia muito importante da Sueli Carneiro, desenvolvida no seu doutorado, que fala sobre o epistemicídio. (Nota do blog: esse termo significa o desprezo ou a destruição de conhecimentos e culturas não assimilados pela cultura branca ocidental). O epistemicídio fala sobre o extermínio da memória negra, fazendo com que costumes, saberes e práticas africanas sejam separados da sua origem. Todo mundo sabe que yakissoba é uma comida dos chineses, e que pizza é dos italianos. Quantas pessoas sabem que (o escritor) Machado de Assis era negro? Então, quando associamos o saber, o costume ao povo, fortalecemos sua identidade. Quando separamos isso, tiramos sua identidade. E a identidade é que nos faz ser o que somos.
Em uma videoaula da Casa do Saber, você disse que experiências familiares não-consanguíneas entre negros e membros da comunidade LGBT (assim como mostra a série ‘Pose’, disponível na Netflix) têm como base a escravidão. Explique.
A escravidão foi um processo social e histórico que obrigou indivíduos cujas vidas eram baseadas na convivência familiar a se reorganizarem para que pudessem continuar existindo. Na sociedade ocidental, como a brasileira e a norte-americana, a família tem um papel muito importante na formação social das pessoas. A família é espaço de cuidado, afeto, escuta, aprendizado, erro e retorno: quando se machuca, a criança busca em seu familiar o apoio e o afago. Tanto os bailes quanto as casas em ‘Pose’, criados a partir da necessidade de acolhida e cuidado, são baseados em afetos e vínculos, além de normas de convivência com princípios sólidos. Tanto na escravidão como na série, essa estrutura foi fundamental para que os indivíduos pudessem ter condições psicológicas de lidar com os processos cotidianos da vida. Sem a família Evangelista, Damon (personagem expulso de casa por ser gay e acolhido por uma mãe postiça transexual) jamais teria conseguido seguir a carreira de dançarino. Aliás, na antropologia, e na psicanálise também, dizemos que os hábitos culturais são ressignificados pelos sujeitos, ou seja, as experiências vividas em continente africano são ressignificadas nos outros espaços para onde os negros foram levados. Digo isso porque sempre me chamou atenção em ‘Pose’ o fato de que os corpos ali eram na maioria negros. Podemos pensar que as famílias organizadas nas ‘casas’ (na série, grupos de pessoas excluídas da sociedade tradicional), naquele contexto, se tratavam de uma reescrita dessa memória de reorganização familiar na escravidão.
Recentemente, uma maquiadora branca foi hostilizada no app TikTok por ensinar maquiagem específica para negras, e usar termos como "mulher preta", "pele preta" e "preta mais clara". Brancos não podem falar a respeito de aspectos da identidade dos negros por conta do lugar de fala?
Acredito que todos devemos e podemos falar de tudo, mas o que não podemos e nem devemos é ofender ou silenciar ao outro desconsiderando a experiência e o saber desse outro. E é justamente isso que o racismo faz: silencia a experiência de pessoas negras. Culturalmente, em nosso País, somente as pessoas brancas devem falar e dizer o certo e o errado. Isso é uma memória cultural da escravidão. Veja, estamos falando de 380 anos de escravidão, mais de 50% da história de nosso País foi dentro de um regime social, político e econômico onde pessoas brancas eram donas da vida de pessoas negras. Isso é muito profundo.
Em live recente, a atriz Taís Araújo, voz importante das mulheres negras brasileiras e precursora do protagonismo negro na TV, disse que após sentir frustração com a personagem Helena, da novela Viver a Vida, que foi rejeitada pelo público, uma tese sobre ancestralidade em um curso do Coletivo Di Jejê “mudou a vida” dela. Qual a importância da produção de conteúdo feito por negros e sobre negros e do acesso a esse material?
Existe uma ideia de que o conhecimento precisa ser produzido de forma neutra, que a experiência do pesquisador não pode fazer parte da pesquisa. Isso é uma das maiores ilusões do pensamento norte-americano e europeu. Nenhum conhecimento é desprovido da experiência de quem o produz. Digo isso porque é justamente esse o motivo pelo qual pessoas negras, ao lerem a produção intelectual de outras pessoas negras, se sintam tão conectadas com essa produção. No momento da leitura essas experiências se conectam e dialogam, de modo subjetivo. Isso é fundamental para a tomada de consciência sobre sua negritude, para a autoaceitação, a compreensão de si como pessoa negra e de qual seu lugar no mundo. Desde 2014, já passaram pelos cursos de formação do Coletivo Di Jejê mais de 8 mil mulheres e homens negros, e sempre que temos o retorno dessas pessoas, elas caminham para o mesmo lugar que o depoimento da Taís Araújo: a potência de encontrar consigo mesmo através da escrita de outra pessoa negra. Por isso um trabalho como o Coletivo Di Jejê é tão fundamental em um País marcadamente racista como o Brasil. Nós possibilitamos que pessoas negras compreendam sua grandeza e a beleza coletiva em ser negro.
A mobilização planetária dos protestos antirracistas como o Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) deu visibilidade às pautas históricas da população negra. Acredita que a sensibilidade social e a ação da mídia no combate ao preconceito serão efetivas e permanentes, ou estamos diante de mais um engajamento efêmero, como outros já ocorridos?
A luta social é permanente, como diz (a filósofa e ativista norte-americana) Angela Davis: a luta pela liberdade é constante. O que vivenciamos de tempo em tempo na história é o movimento de rebentação igual ao do mar. A tensão cresce e a pressão aumenta, depois a coisa retrocede, mas a tensão racial segue no ar, igual o cheiro de maresia. Na próxima alta, a coisa volta ainda mais forte, até que a mudança aconteça. Sempre foi assim, a tensão se espalha e a mudança acontece. O que não podemos esquecer nunca é que a liberdade é uma luta constante.
A antropóloga e historiadora Lilia Schwarcz foi ‘cancelada’ na internet por um artigo crítico ao filme musical Black is King (Negro é rei), de Beyoncé. Disseram que ela, como branca, não possui autoridade para analisar a questão racial apresentada na obra. Qual a sua opinião, como mulher negra e acadêmica, a respeito dessa polêmica?
A questão não é, e nem pode ser, o fato de Lilia ser branca, porque senão eu não poderia ser psicanalista nem antropóloga, duas áreas inventadas pelos brancos para responder aos seus próprios problemas. A questão foi a professora Lilia supor que seu saber era universal, e usar o seu ponto de vista único e exclusivo para analisar a experiência de uma mulher negra sobre sua ancestralidade. Esse artigo de opinião escrito por ela foi uma vergonha enorme no sentido de que toda a ideia inconsciente de superioridade branca foi magistralmente manifestada, fora a violência colonial (no sentido de reproduzir o lugar da sinhá branca e da negra escrava), presente de modo simbólico na frase ‘está na hora de Beyoncé sair da sala de estar’. A violência dessa frase está no fato histórico que a sala de estar era o lugar que as mucamas ocupavam dentro da Casa Grande, um lugar mais confortável que a senzala, mas ainda um lugar de sujeição, uma vez que a presença delas ali era apenas para servir e entreter os senhores e as senhoras de escravos.
Muitos atores negros reclamam de ser escalados apenas para papéis coadjuvantes e de subalternos, como escravos e empregados domésticos, ou então de bandidos. Na sua opinião, esses artistas deveriam recusar tais personagens, ou é melhor ter alguma visibilidade negra na teledramaturgia do que nenhuma?
É melhor ter algum emprego do que nenhum. É uma ilusão achar que um sistema social baseado no controle de um grupo racial sob o outro grupo, como no Brasil, País onde brancos detêm 99% da riqueza, da cultura, da mídia, dos bancos, dos meios de produção, vai ter trabalho para todos os artistas negros e que ainda eles vão poder escolher seus papeis, como fazem, ou supostamente fazem, os artistas brancos. Uma das principais lutas dos negros nos Estados Unidos é a autonomia financeira para gestão inclusive de suas carreiras. Eles criaram bancos, escolas, universidades, produtoras de cinema, e puderam assim ter um pouco mais de autonomia sobre o que fazer e como fazer.