A imprensa sempre gostou de promover e depois desconstruir a imagem hollywoodiana de ‘divindades humanas’.
Faz parte da missão jornalística contestar as unanimidades do chamado mercado da fé.
O novo caso de altar desmoronado envolve o mais famoso e midiático médium do País, João de Deus.
Há décadas, ele atrai anônimos e famosos, pobres e ricos, brasileiros e gringos até Abadiânia, em Goiás, onde fica o espaço no qual realiza consultas e cirurgias espirituais.
No Conversa com Bial de sexta-feira (7), várias mulheres acusaram João Teixeira de Faria, de 76 anos, de assédio e abuso sexual.
A atração comandada por Pedro Bial mudou seu formato para deixar duas entrevistadas mais à vontade: não houve banda nem plateia.
Uma coreógrafa que se tratou com o médium e atuou como sua assistente, e uma guia turística que levava estrangeiros até ele participaram da conversa no estúdio.
Em depoimentos gravados, outras vítimas não mostraram o rosto e tiveram a voz alterada para impedir sua identificação.
Esse tipo de pauta-denúncia não é comum no Conversa com Bial. O programa, que tem sofrido derrotas frequentes da concorrência no Ibope, raramente polemiza.
Como âncora, Bial conduziu bem a edição atípica: questionou sem prejulgamento, buscou detalhar os abusos sem beirar no sensacionalismo, e abriu espaço para João de Deus se defender – a assessoria de imprensa do espiritualista enviou uma sucinta nota negando as acusações.
No bloco final, o apresentador do talk show fez ótima prestação de serviço ao telespectador: uma esclarecedora entrevista com uma promotora de justiça especializada em casos de crimes sexuais.
Na esteira de movimentos de denúncias contra abusadores, como o #MeToo e o ‘NãoéNão’, pautas assim são coerentes e necessárias no telejornalismo e até nas produções de entretenimento. Melhor ainda quando realizadas com ética jornalística.
Assumidamente vaidoso, João de Deus sempre gostou de ser paparicado por jornalistas e emissoras de TV.
Na Globo, ganhou destaque várias vezes. Em 2012, no Fantástico. No ano seguinte, no Globo Repórter. Serginho Groisman exibiu longa entrevista com o médium no Altas Horas, em 2016. Naquele mesmo ano, o líder espiritual foi capa de Veja.
Artistas de todos os naipes já postaram foto ao lado dele após conselhos ou tratamentos. Entre elas, Xuxa, Luciana Gimenez, Giovanna Antonelli, Juliana Paes, Ronaldo Fenômeno e a top model inglesa Naomi Campbell.
Até a apresentadora de TV mais poderosa e rica do planeta o procurou: Oprah Winfrey veio dos Estados Unidos, em março de 2012, exclusivamente para conhecer João de Deus e entrevistá-lo. “Foi uma experiência muito forte”, disse ela na ocasião.
Agora, sob a sombra da desconfiança, o médium poderá ver minguar a fila de artistas, socialites, políticos e representantes da elite empresarial.
É o segundo caso de celebrada autoridade mística a cair em desgraça após ser acusada de crime sexual.
Em agosto, o alvo foi Sri Prem Baba, nome religioso de Janderson Fernandes, 53 anos.
A imprensa divulgou três denúncias de abuso contra seguidoras do autodeclarado mestre espiritual. Em sua defesa, ele declarou que as relações sexuais foram feitas de maneira consensual.
Com atuação no Brasil e na Índia, Prem Baba tem (ou tinha) entre seus admiradores famosos como Reynaldo Gianecchini, Márcio Garcia, Bruna Lombardi e até o astro do cinema norte-americano Will Smith.
O guru mereceu espaço em várias atrações de TV, como o próprio Conversa com Bial (quando dividiu o sofá com Gianecchini), o Encontro com Fátima Bernardes e o Mais Você de Ana Maria Braga.
Em novembro de 2017, estampou a capa de Serafina, revista encartada da Folha de S. Paulo e, em julho deste ano, surgiu na capa de Veja São Paulo.
Antes incensados e jamais contestados, João de Deus e Sri Prem Baba agora se tornam ‘persona non grata’ nos programas de TV nos quais foram tão bajulados.