A omissão ou má gestão de políticos e governantes produz empobrecimento e mortes no Brasil atual. No entanto, a pessoa mais odiada do País é Karol Conká, responsável por prejudicar meia dúzia de adversários ao seu redor no ‘BBB21’. Como explicar tal distorção da realidade?
A mesma rapper se tornou bode expiatório em relação ao racismo. Suas atitudes e declarações reprováveis em relação a colegas pretos alimentam a teoria racista de que “o pior inimigo do negro é o próprio negro”, relativizando o histórico de discriminação e segregação da sociedade branca.
Por que tais situações incoerentes acontecem? Em busca de respostas, o blog ouviu o Doutor e Mestre em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Wallace Corbo. Ele foi pesquisador visitante na Harvard Law School, nos Estados Unidos, e atualmente é professor da FVG Rio, Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getúlio Vargas.
O protagonismo negro baseado em polêmicas em um programa de imensurável repercussão como o ‘BBB’ faz bem ou mal à luta antirracista?
No Brasil, como em outros Países, uma das consequências do racismo é precisamente a invisibilização e a ausência de pessoas negras em todos os espaços de representação e de exercício de poder. Não vemos negros como executivos em empresas, como apresentadores em programas de televisão, como moradores nos bairros nobres. Nesse sentido, podemos sim ver a maior presença de pessoas negras em programas de televisão, filmes e novelas como algo potencialmente positivo, sempre que essa representação contribua para romper com estereótipos e imagens distorcidas da humanidade de pessoas negras. Não há como calcular apressadamente a repercussão de uma representação negativa de pessoas negras sobre a luta antirracista, até porque sempre convivemos com essa representação e sentimos os efeitos disso até hoje. O que podemos visualizar, desde já, é que o racismo que permeia nossas relações sociais faz com que os erros de pessoas negras, especialmente as que sejam símbolos de algum tipo de fortalecimento de pessoas negras no Brasil, sempre são apropriados como argumento para a manutenção da exclusão, da discriminação e da desigualdade. Ou seja, para cada deslize público ou privado de uma pessoa negra, haverá sempre alguém que use desse erro para legitimar o racismo e a desumanização de pessoas negras. E precisamos lembrar que esse ‘alguém’ não é, estatisticamente, uma pessoa negra.
No ‘BBB21’, assistimos a negros humilhando e segregando um outro negro (Lucas). Isso pode gerar impacto prejudicial à causa antirracista ou se trata tão somente da humanização do negro, que é bom e mau como pessoa de qualquer outra etnia?
Se entendermos que a causa antirracista nada mais é que a reivindicação por uma sociedade igualitária em termos raciais, em que pessoas brancas e pessoas negras são igualmente vistas como pessoas, o que pode atrapalhar esta luta não é o fato de pessoas negras serem boas ou ruins, acertando ou errado (seja com relação a pessoas brancas, seja umas com as outras). O que acaba por impactar negativamente a luta antirracista é precisamente o próprio racismo, que nos faz olhar, por exemplo, para os erros de uma pessoa negra e entendê-los como erros de todas as pessoas negras. Como se uma pessoa negra respondesse por todas e todas as pessoas negras respondessem por uma. Pior, o racismo nos faz olhar para os comportamentos repreensíveis de pessoas negras em relação a outras pessoas negras, culpando essa coletividade negra pelo seu próprio infortúnio, ao passo que nos faz ignorar as omissões e as ações de pessoas brancas, que estariam em igual posição de ajudar e de intervir em favor destes mesmos sujeitos humilhados e segregados, mas, ao não o fazerem, contribuem para uma situação lamentável.
A participante Karol Conká, famosa por seu ativismo negro e feminista, se tornou a pessoa mais odiada do Brasil por conta de suas atitudes e declarações no programa. Na sua avaliação, há um sadismo em desconstruir uma liderança negra? A aversão quase unânime contra Karol está contaminada por racismo?
No Brasil de 2021, estamos lançados em uma crise econômica, social e política sem precedentes, em que literalmente milhões de brasileiros foram lançados à fome e à miséria em razão de atos e omissões facilmente atribuíveis a alguns líderes políticos. Apesar disso, consideramos razoável que a pessoa mais odiada do País hoje possa ser uma mulher negra que errou em um reality show e cujos atos repercutem apenas sobre meia dúzia de participantes bem remunerados para aparecer no programa. Seria excessivo pensar que qualquer reação a erros públicos de um participante de reality show ou de um artista negro é fruto pura e simplesmente de racismo. Todos podemos gostar ou não gostar de pessoas em razão dos seus atos, sejam elas quem forem. Mas na medida em que a discriminação racial está presente em nossas instituições e em nossas relações sociais, é inevitável que ela se espraie também para a reação que hoje vemos nas redes sociais em relação a Karol Conká. Pessoas se veem legitimadas a publicamente fazer ameaças de morte, realizar xingamentos racistas e até mesmo atacar seus familiares (negros) por conta de um programa de televisão. A perda de seguidores em redes sociais e o cancelamento de contratos e vínculos profissionais parece não encontrar precedentes em nenhuma outra edição do ‘Big Brother Brasil’, apesar de ano após ano novos ‘vilões’ surgirem no programa. Estamos falando, então, de um verdadeiro ponto fora da curva, de algo que vai muito além do boicote. E o diferencial aqui, certamente, é que o alvo é uma artista negra e, mais, uma artista que para muitos representava esse certo empoderamento ou representatividade negra. Por isso que essa reação nas redes sociais invariavelmente vai ser permeada pela naturalização da violência contra pessoas negras que, em casos mais extremos, mata consumidores negros em supermercados e lincha jovens negros amarrados em postes em bairros nobres das grandes metrópoles.
No início do ‘BBB21’, o participante Lucas propôs a união dos negros para eliminar os demais competidores (brancos) a fim de garantir um preto na final do programa. Houve reações de desaprovação dentro e fora do programa. Acha que esse tipo de estratégia é aceitável na sociedade em geral para garantir a ascensão de negros?
Atingir o ideal de uma sociedade racialmente igualitária envolve uma multiplicidade de estratégias e de possibilidades. Como nenhuma sociedade marcada pelo racismo contemporâneo conseguiu, até hoje, atingir este objetivo, estamos todos aprendendo e desenvolvendo novos caminhos dia após dia. O fato é que experiências como a dos Estados Unidos e mesmo a brasileira têm demonstrado que as transformações sociais só acontecem pela organização e movimentação coletiva de pessoas negras. Isso porque em uma sociedade racialmente desigual, o acesso à voz no espaço público é reiteradamente negado às pessoas negras individualmente consideradas. Onde estão os intelectuais negros nos jornais, na televisão, nas universidades? Nesse sentido, a organização coletiva potencializa a voz e a reivindicação de demandas perante a sociedade e o Estado. Não é uma questão, certamente, de estratégias de jogo em um reality show; estas, cabe ao público, no fim do dia, julgar. Estamos falando aqui da conquista de direitos, esta sim que só tem sido possível a partir destes vínculos de solidariedade, respeito e apoio mútuo entre as pessoas que estão sujeitas às violências e injustiças cotidianas.
A participante negra Lumena se referiu a uma competidora branca, Carla, como “sem melanina” e “desbotada” Tais comentários geraram uma notícia-crime da parte do deputado estadual Anderson Moraes (PSL-RJ) por suposto “racismo reverso”. Como o senhor, Doutor e Mestre em Direito, analisa essa situação? Lumena merece e pode ser incriminada por suas falas? A lei reconhece o conceito de “racismo reverso”?
O racismo, seja como crime, seja como fenômeno social, pressupõe a existência de discriminações e desigualdades históricas e persistentes contra um grupo social. O racismo suscita dores e violências que apenas tais grupos raciais marginalizados coletivamente e em diferentes contextos compartilham. Disto decorre que pessoas negras podem estar sujeitas ao racismo, assim como indígenas e pessoas de origem judaica, sempre de acordo com seus próprios contextos e particularidades. O “racismo reverso”, no entanto, é um verdadeiro crime impossível, exatamente porque não existe em nosso tecido social qualquer possibilidade de, por quaisquer atos ou omissões, uma pessoa negra inverter a estrutura que a posiciona, por definição, na base, entre os desprovidos de direitos e bens sociais. Isso não significa que agressões verbais que sejam graves e praticadas por pessoas negras contra pessoas brancas não sejam repreensíveis; só não podem, em nenhuma hipótese, constituir racismo.
Como o senhor vê o conceito de ‘democracia racial’ associado ao Brasil?
A ideia de que no Brasil não existe racismo ou conflitos raciais porque seríamos uma sociedade em que os diferentes grupos raciais convivem harmonicamente não sobrevive a uma caminhada pelas ruas do Leblon ou dos Jardins. São espaços em que se confirma o papel social exercido por pessoas negras no Brasil: o de servir. É verdade que no Brasil vivemos índices de desigualdade enormes que atingem não apenas pessoas negras, como também pessoas brancas. Ocorre que, mesmo considerando o recorte de renda, pessoas negras de maneira consistente apresentam níveis inferiores de acesso a bens básicos, como saúde, educação e acesso ao mercado de trabalho formal. Não há uma harmonia entre as raças. A ideia de democracia racial, que um dia poderíamos atingir, hoje é apenas um discurso de autoconforto e de fortalecimento da hierarquia racial existente. De autoconforto porque, para pessoas negras, a ideia de democracia racial permite que elas fujam da reflexão sobre as dores do racismo, enquanto para pessoas brancas, evita que pensem sobre uma estrutura perversa que as beneficia. E de fortalecimento da hierarquia, porque o problema de que não falamos é um problema que não resolvemos, e enquanto não resolvermos o nosso problema, o racismo, ele apenas se tornará mais e mais inabalável.
Qual o papel e a importância da mídia, especialmente da televisão, no enfrentamento do racismo e na valorização dos negros?
Os meios de comunicação em geral, e a televisão em especial, atuam na construção, fortalecimento ou eventualmente na ruptura de símbolos sociais e de estereótipos persistentes da sociedade. Até os anos 90 e 2000, estes meios de comunicação acabaram por construir e fortalecer os estereótipos que hoje tentamos combater. Basta lembrar dos poucos personagens negros em novelas, sempre ocupando o lugar da empregada doméstica, do motorista, do malandro e do bandido. Nos últimos anos, no Brasil, vimos uma mudança nestas representações, com mais e mais personagens negros ocupando lugar de destaque e posições que antes não imaginávamos como sendo franqueadas a pessoas negras. E imaginar a transformação é o primeiro passo para realizá-la. Ao se engajar na causa antirracista, então, a mídia pode contribuir para a nossa capacidade de sonhar, de ampliar nossos horizontes e de romper com um imaginário social que ainda limita a humanidade de pessoas negras.
O professor Wallace Corbo está ministrando o curso ‘Justiça e Racismo no Brasil: Caminhos para a Igualdade no Século 21’, na Casa do Saber. Serão seis encontros on-line e interativos a partir de hoje (22 de fevereiro) até 29 de março.