Causou espanto a carta na qual Fabiana Cozza renunciou ao papel de Dona Ivone Lara no musical que contará a vida da grande dama do samba, morta aos 96 anos, em abril.
A cantora paulistana, filha de pai negro e mãe branca, foi criticada – inclusive por frações do movimento negro – em razão de ter pele ‘clara demais’ para interpretar a saudosa sambista, que era mais escura.
Constrangida, Cozza preferiu abrir mão de homenagear seu ídolo para que uma atriz ‘mais’ negra ao olhar geral assuma o papel.
“Renuncio por ter dormido negra numa terça-feira e numa quarta, após o anúncio do meu nome como protagonista do musical, acordar ‘branca’ aos olhos de tantos irmãos”, escreveu a cantora no comunicado.
“Renuncio porque a cor da pele de Dona Ivone Lara precisa agora, ainda, ser a de outra artista, mais preta do que eu.”
Há muito mais do que 50 tons de negritude. Existem infinitas tonalidades a partir da miscigenação.
Essa diversidade tipicamente brasileira sempre foi vista como uma característica positiva e admirada planeta afora.
Temos negros mais claros e com traços finos, que se passam por brancos, até negros retintos com aspecto bem africano.
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, responsável pelo Censo, faz uma simplificação dessa variedade. Divide os brasileiros entre brancos, pardos e pretos.
Cada pessoa se define a partir da autoidentificação e/ou autoaceitação.
Existem negros que, por serem mais claros, se apresentam como brancos ou, no máximo, ‘morenos’.
Uma tentativa de escapar do racismo ou por flagrante autopreconceito.
Fabiana Cozza prefere se definir negra. Para ela, não importa que sua pele tenha menos melanina do que a de um negro africano.
Julgá-la imprópria para viver Dona Ivone Lara, por acreditar que ocuparia um lugar indevido tão somente pela tonalidade de sua pele, é um gesto violento de negro contra negro.
Entende-se a necessidade de dar mais visibilidade na mídia aos negros escuros, alvo de maior preconceito no dia a dia.
Mas a mensagem transmitida nesse caso específico é terrível.
Afinal, a cor da pele jamais deveria impedir um artista de interpretar seja qual for o papel.
No domingo (3), Sandra de Sá arrebatou plateia e jurados do Domingão do Faustão ao surgir pintada de branco na caracterização de Dalva de Oliveira no Show dos Famosos.
Foi bonito ver uma cantora negra, intimamente ligada à luta contra o racismo, homenagear uma artista de outra raça. Isso chama-se arte.
Estranhamente, não houve um motim contra Sandra de Sá.
Pela lógica que afetou Fabiana Cozza, a cantora deveria ser condenada por ‘trair’ os negros ao interpretar uma branca diante das câmeras.
Pior ainda: ela o fez na Globo, emissora vista como racista pela maioria dos ativistas negros.
Na produção artística não se pode impor limites de gênero, idade e etnia.
Todo ator ou cantor pode interpretar quem quiser no palco.
Fazer arte pressupõe liberdade poética. Está acima do fenótipo do artista.
“O racismo se agiganta quando transferimos a guerra para dentro do nosso terreiro”, alertou Fabiana Cozza em sua carta.
“Renuncio porque quero que outras mulheres e homens de pele clara, feito eu, também tenham o direito de serem respeitados como negros.”
Como se vê, o problema racial no Brasil vai além da discriminação imposta por brancos.