"É preciso ter muita paciência com o Brasil. É um país em pleno desenvolvimento. O país está num momento muito delicado". É assim que o autor do romance Dois Irmãos, o escritor amazonense Milton Hatoum, se refere ao atual cenário político e econômico brasileiro.
Considerado um dos nomes mais importantes da literatura contemporânea brasileira, Hatoum se prepara para acompanhar a partir desta segunda-feira os dez capítulos de Dois Irmãos, a nova minissérie da Rede Globo inspirada no seu romance.
"O papel do intelectual é ser marginal, outsider. Se ele for independente, não pode ser leal a uma religião nem a um partido político, muito menos ao poder", diz o escritor, de 64 anos.
"O intelectual tem que ser uma voz que critique o poder. O preço é a solidão", continua. "Não quero ser um hipócrita acompanhado de milhares de pessoas".
'Vai ser um marco na TV'
A obra de Hatoum foi adaptada por Maria Camargo e dirigida por Luiz Fernando Carvalho, que já transpôs para a TV obras de Eça de Queirós, Ariano Suassuna e Machado de Assis.
Dois Irmãos marca a volta à emissora de uma minissérie inspirada em uma obra da literatura brasileira.
Em entrevista à BBC Brasil, Hatoum não disfarça a ansiedade com a reação do público e conta que se emocionou muito ao assistir alguns trechos na fase de finalização.
"Vai ser um marco na TV", garante. "É cinema. Tem uma força expressiva e estética que não é comum na televisão".
Através da história de uma família de imigrantes libaneses, Dois Irmãos vai mostrar também as transformações profundas sofridas por Manaus entre as décadas de 1920 e 1980.
O crescimento populacional desordenado, o surgimento e a extinção da cidade flutuante de Manaus, a presença do Exército durante o regime militar, o empobrecimento e a modernização repentina trazida pela Zona Franca estão na narrativa de Hatoum.
"Meus livros também falam sobre o desastre urbanístico brasileiro", diz ele que, em 1977, antes de se tornar escritor, diplomou-se na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, em São Paulo.
"Acompanho arquitetura, gosto. Em Dois Irmãos é possível ver o que aconteceu com a cidade de Manaus", acrescenta.
"Nasci num Brasil muito diferente, numa família de migrantes, em Manaus".
O escritor explica que a distância dos grandes centros como São Paulo e Rio de Janeiro contribuiu para produzir um olhar distinto em relação ao Brasil.
"Você nasce no meio do estranhamento, no meio da floresta, com a força das árvores, com os índios. A herança indígena é muito presente no cotidiano das pessoas, na rede em que a gente dorme."
O arquiteto que virou escritor
Aos 15 anos, Hatoum deixou Manaus e foi estudar em Brasília.
Escreveu um texto em defesa da floresta amazônica e acabou conhecendo a perseguição da ditadura militar aos estudantes.
A capital do Amazonas ficava cada vez menor para ele: terminou a universidade em São Paulo, lecionou Arquitetura em Taubaté e seguiu para mais estudos na Espanha e na França, mas agora na área da Literatura.
Voltou de Paris para Manaus e, de 1984 a 1998, foi professor de literatura francesa na Universidade Federal do Amazonas.
"Deixei a Universidade Federal do Amazonas porque ela havia ficado muito burocratizada. Eu não tinha tempo para ler nem para escrever. Já imaginou um professor que não consegue ler? Não harmonizava com o trabalho de escritor", lembra ele, que se radicou em São Paulo.
O primeiro romance, Relato de um certo Oriente, é de 1989.
Dois Irmãos, o segundo, veio 10 anos depois. "Comecei a escrever com 28 anos. Só publiquei com 37 anos e levei mais 10 anos para publicar outro livro".
A explicação para os ciclos de uma década entre suas obras parece simples.
"Acho que há muitos livros no mundo. Sou muito auto-exigente. Publico quando se esgotam todas as minhas forças".
O novo romance
E é nesse processo de "esgotamento" que Hatoum fala sobre seu novo romance:
"É um romance em dois volumes, que eu comecei em 2008. Estou tentando terminar o primeiro volume e talvez publique em 2017. O título provisório, que eu quero que permaneça, é O Lugar Mais Sombrio".
A obra tem no momento 400 páginas, mas o escritor está cortando essa "espécie de história moral" da sua geração.
"Quando você faz cortes num romance, pode adensar e dar mais força aos personagens. Alongar uma história por nada não serve, não é bom. Já não hesito mais em tirar coisas que devem ser cortadas".
Hatoum diz que o novo romance "ecoa muito no presente", com histórias de "personagens que não participaram da luta armada contra a ditadura militar no Brasil".
"Eles estiveram à margem. É a história de uma geração desiludida e também há um drama moral", adianta.
O autor acorda cedo e trabalha muito - nos livros, crônicas para jornais, cursos e palestras - mas sempre encontra tempo para levar os filhos na escola.
"Não existe uma fórmula para escrever. Trabalho muito com desenhos e escrevo à mão, com caneta. Sou o último dinossauro", diverte-se.
Os autores favoritos são Guimarães Rosa e Graciliano Ramos.
"Acho que aprendi alguma coisa com eles e com o Machado (de Assis). O futuro da literatura está no seu passado", diz e cita ainda Gustave Flaubert, Virginia Wolf, Franz Kafka e Joseph Conrad.
"A literatura não trabalha com maniqueísmo. É o mundo das incertezas, das perguntas, da sondagem da alma humana. Uma literatura ideológica é o fim".
Momento de insurgência
Hatoum diz que nunca foi filiado a partidos políticos, mas se preocupa com o momento do país.
"O momento é de reflexão e de crítica. Assisto a tudo com um sorriso no canto do lábio, como diria Machado de Assis. Não sei quem está pensando nos pobres".
"Acho que tudo o que está acontecendo no Brasil é uma forma de trazer todas as nossas iniquidades à tona", analisa.
"Seria uma espécie de grande conflito que gera o trágico, uma catástrofe e você tenta reconstruir um sistema político que foi destruído pelos militares".
"Há uma segregação enorme. Acho que caminhamos para um certo tipo de insurgência que já começou. Uma insurgência de várias matizes ideológicas", continua.
"A insurgência surge do descontentamento, da desigualdade, do sofrimento".