Escrita há 60 anos, a peça ‘Eles Não Usam Black-Tie’, do saudoso Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006) parece ter sido inspirada no atual momento sócio-político do Brasil.
O protagonista, Tião (Kiko Pissolato), representa o brasileiro que prefere não participar de protestos por reivindicação de direitos. Deseja uma vida estável e longe de debates ideológicos.
Já sua noiva, Maria (Paloma Bernardi), personifica o cidadão indignado com as opressões sociais e ávido por se manifestar publicamente contra tais injustiças. Ela crê num mundo melhor construído pelas mãos do povo. São dois personagens atuais, intensos, plausíveis.
É admirável que, num cenário teatral com tanta dificuldade de atrair público, os produtores Fabio Camara e Ana Clara Rotta, e o diretor Dan Rosseto, tenham tido a coragem de remontar um clássico da dramaturgia brasileira, com texto politizado e capacidade de tirar o espectador da letargia – ou da conveniente alienação.
Para os atores, reviver personagens icônicos do teatro brasileiro é um privilégio e, ao mesmo tempo, uma missão.
“Todo ator deveria fazer clássicos de Nelson Rodrigues, Plínio Marcos, Shakespeare, entre outros mestres”, opina Kiko Pissolato. “Eu me sinto na obrigação de me desafiar no palco.”
Em tempos de duelos de opiniões nas redes sociais e excesso de fake news, ele ressalta o valor do posicionamento individual. “O artista já tem, na maioria das vezes, opinião contrária à da massa. Exerce o papel da divergência”, explica. “É importante que, na vida e na arte, o ator se manifeste. Quando a gente olha só para si e se fecha, nada acontece.”
Pissolato procura participar de discussões na internet sem se fechar para o outro: “Respeito a individualidade, estou sempre de ouvido aberto para aprender. Às vezes, as manifestações políticas e filosóficas não são construtivas. Mesmo assim, é melhor debater do que se omitir.”
Visto em novelas da Globo e Record, Kiko afirma que “o teatro é vida” e logo terá seu próprio espaço para encenações em São Paulo. Em setembro, será visto nos cinemas como protagonista de O Doutrinador, longa de ação e suspense dirigido por Gustavo Bonafé. Seu personagem é um agente altamente treinado que assume a identidade de um exterminador de corruptos. Ficção intrinsecamente ligada à realidade brasileira, assim como a peça.
Após viver mocinhas românticas e vilãs odiosas em produções da TV, Paloma Bernardi vê na idealista Maria de ‘Eles Não Usam Black-Tie’ uma inovação em sua carreira: “Ela é evangélica, está grávida, tem ideologia tão forte que se vê dividida entre o amor e a luta social”.
Para compor sua versão da conhecida personagem, a atriz assistiu a alguns filmes. Um deles foi ‘Garotas do ABC’, de Carlos Reichenbach (1945-2012), sobre os sonhos e as desilusões de um grupo de operárias.
“Pensei bastante também a respeito da maternidade”, conta Paloma, que ainda não é mãe. “Um filho muda tudo, inclusive a visão de mundo”. No ambiente controverso das redes sociais, a artista evita confronto. “Respeito a individualidade. As diferentes ideologias precisam conviver pacificamente. Consigo ver beleza no coletivo do povo.”
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‘Eles Não Usam Black-Tie’ – Elenco: Adilson Azevedo (Otávio), Camila Brandão (Terezinha), Carolina Stofella (Dalva), Kiko Pissolato (Tião), Pablo Diego Garcia (João), Paloma Bernardi (Maria), Paulo Gabriel (Jesuíno), Samuel Carrasco (Chiquinho), Teca Pereira (Romana) e Tiago Real (Braúlio).
Teatro Aliança Francesa, Rua General Jardim, 182, Vila Buarque, São Paulo (SP). Sexta e sábado às 20h30, domingo às 19h. Até 16 de setembro. Informações: (11) 3572-2379.
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