Em entrevista ao videocast de Tati Bernardi, no UOL, Marisa Orth fez uma análise certeira sobre a mudança de posicionamento ideológico da principal emissora de TV do País ao longo de décadas.
“A Globo surgiu durante a ditadura militar. A Globo era, durante muitos anos, um instrumento da manutenção da direta. E depois virou uma tremenda ferramenta pela democracia. Querer fechar a Globo virou coisa de fascista”, disse a atriz.
Hoje, o canal que já foi considerado inimigo da esquerda e de Lula é visto como progressista. Ameaçado de não ter sua concessão pública renovada ao longo dos 4 anos da Presidência de Jair Bolsonaro, tornou-se cada vez mais defensor da Constituição e demais conjuntos de leis.
Desde os ataques aos prédios públicos de Brasília, em janeiro de 2023, seus telejornais exibem matérias em defesa da democracia. O tom ficou ainda mais incisivo com a descoberta do plano para impedir que Lula tomasse posse do 3º mandato.
No ‘Jornal Nacional’ de quarta-feira (27), por exemplo, falou-se em “atuação coordenada dos conspiradores para dar um Golpe de Estado”. O repórter Júlio Mosquéra destacou a cumplicidade do Exército com os acampamentos de “manifestantes radicais” e a “trama golpista” do “assassinato do presidente Lula, do vice, Geraldo Alckmin, e do ministro do STF Alexandre de Moraes”.
Essa Globo que agora usa seu imensurável poder de persuasão para condenar atos autoritários nem parece a mesma emissora que, como lembrou Marisa Orth, colaborou com os generais nos piores momentos dos anos de chumbo, divulgando as notícias – ou melhor, a versão manipulada dos fatos, lida por apresentadores como Cid Moreira – que interessavam à cúpula militar.
Especialmente em seus primeiros anos, o canal seguiu a visão pró-ditadura de ‘O Globo’. O fundador da TV e presidente do jornal, Roberto Marinho, cultivava relação de amizade com alguns dos generais mais temidos, incluindo João Batista Figueiredo, último presidente antes da redemocratização.
Em 7 de outubro de 1984, o jornalista publicou um editorial no qual admitiu o apoio ao golpe que depôs o presidente João Goulart. “Participamos da Revolução de 1964, identificados com os anseios nacionais de preservação das instituições democráticas, ameaçadas pela radicalização ideológica, greves, desordem social e corrupção generalizada”, diz o trecho inicial, repetido incontáveis vezes por Bolsonaro em aparições diante das câmeras.
Um ano depois, a Globo foi acusada de sabotar a cobertura dos protestos pelas Diretas Já. Houve um ‘mea-culpa’ somente em 31 de agosto de 2013, em outro artigo no jornal do clã Marinho. “Apoio editorial ao golpe de 64 foi um erro”, foi a manchete. “A consciência não é de hoje, vem de discussões internas de anos, em que as Organizações Globo concluíram que, à luz da História, o apoio se constituiu um equívoco.”
A emissora sentiu o drama da radicalização quando seus repórteres e cinegrafistas passaram a ser hostilizados nas ruas, principalmente por apoiadores de Jair Bolsonaro e da extrema direita, aos gritos de “Globo lixo”. Alguns foram feridos, como Leandro Matozo, vítima da cabeçada de um eleitor bolsonarista. “Se pudesse, matava vocês”, disse o agressor, segundo relato da equipe. Nem o âncora William Bonner escapou: sofreu ameaças pela internet e intimidação presencial.
A maioria dos esquerdistas mantém desconfiança em relação à Globo por seu passado conservador e o suposto oportunismo em defender a democracia. Os direitistas mais alinhados a Bolsonaro seguem demonizando o canal, ainda que o próprio então presidente tenha assinado a renovação da concessão da TV dos Marinhos por mais 15 anos. Incoerências à parte e indo de um lado ao outro do espectro político, a Globo continua a ser o veículo de comunicação mais influente do Brasil. Presidentes e ideologias vêm e vão, a emissora permanece inabalável.