‘Motoboy/SP’ oferece lições de humanidade na metrópole e bom jornalismo na veia

Programa estreia com motogirl criticando os apps de delivery por pagarem pouco e, logo depois, um comercial do iFood

23 out 2023 - 08h00

Uma câmera, pessoas comuns e histórias reais do ‘corre’ em uma das maiores cidades do planeta. A série documental ‘Motoboy/SP’, parceria da Favela Filmes com a Globo, pega carona na vida dos entregadores motociclistas em São Paulo. 

Apresenta tantas qualidades que já pode ser considerada uma das melhores produções jornalísticas do ano na TV aberta. Excelente trabalho de humanização de uma categoria invisibilizada, vilanizada e sem o devido reconhecimento financeiro. 

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O primeiro acerto do formato é deixar os próprios personagens conduzirem o programa, sem a presença no vídeo de um apresentador, repórter ou narrador. 

Enxuto e veloz, o roteiro valoriza a vida familiar e as fragilidades dos motoboys. Afinal, embaixo de cada capacete há alguém com amores, medos, sonhos, decepções, traumas. 

As histórias se entrelaçam pelas coincidências, a exemplo dos preconceitos sentidos na pele. A motogirl Ilda Nascimento, que passou 10 anos no sistema penitenciário e defende a ressocialização de ex-detentos, citou os motoristas que sobem o vidro do carro ao vê-la parar ao lado, sendo que ela própria sente medo de ser assaltada no trânsito. 

Entre as dificuldades da categoria, Ilda apontou a baixa remuneração. “Os aplicativos pagam pouco”, disse. Na ida ao intervalo, um comercial do iFood. Saborosa ironia. Sinal de que não houve censura do conteúdo crítico dos depoimentos. 

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Pai com 3 filhos também entregadores, Ronaldo ‘Sorriso’ Soares lamentou a discriminação contra o “motoboy de cor”. Contou ter sido ameaçado em condomínio de bairro chique. “Vou quebrar esse negro”, avisou o cliente irritado com o atraso na entrega. Doeu assistir ao relato. Tal racismo não é exceção, sabemos. 

Edgard da Silva, o Gringo, se emocionou ao lembrar a infância sem mínima infraestrutura. Com esforço, conseguiu cursar dois anos de Engenharia em uma faculdade particular. 

A mensalidade pesou no orçamento doméstico. Foi obrigado a desistir. Quando conseguiu ser aprovado em uma universidade pública, renunciou ao sonho do diploma para fazer ativismo sindical pelos direitos dos motofretistas. 

Ele ressaltou a importância dos motoboys ao longo da pandemia e a contribuição à fluidez na cidade, já que agilizam entregas e evitam a circulação de veículos maiores. Destacou outro tipo de discriminação. “Às vezes, a gente é colocado no elevador com o lixo pra subir”, disse. “Falta um ‘bom dia’, ‘boa tarde’, ‘boa noite’.”  

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Mais um drama apontado por Edgard foi o da morte de colegas. Segundo o CPTran, 374 ocupantes de motocicletas perderam a vida nas ruas de São Paulo em 2022. Na média, mais de um corpo no asfalto por dia. “A sociedade não sabe o que é arriscar a vida”, lamentou o entregador-sindicalista ao pedir mais respeito. 

Sem nunca ter desejado outra profissão, Ewerton de Lima, o Rizolito, aproveita os ‘corres’ para gravar vídeos. O influenciador “motoboy raiz, cachorro louco” é seguido por mais de 200 mil pessoas entre Instagram e YouTube. 

Ele abordou um tema delicado: a desconfiança contra todo entregador. “Virou normal a pessoa se fantasiar da categoria mais unida do Brasil, colocar uma bag nas costas e sair aí roubando pela rua”, protesta. “Quem rouba é ladrão, motoca é motoca.” 

Mostrou-se indignado com a violência sofrida pela classe. “Virou moda o motoboy entregar uma pizza e receber um soco de caixinha.” Vídeos nas redes sociais mostram a solidariedade entre os profissionais. Quando um deles é ofendido, dezenas se juntam para fazer buzinaço na frente da casa do cliente arrogante.  

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O único equívoco do primeiro episódio de ‘Motoboy/SP’ foi incluir o explícito merchandising de uma seguradora de motos no meio de um depoimento. Ok, as contas da produção precisam ser pagas. Vamos relevar. 

Os créditos trouxeram o nome de Henrique Mello como ‘piloto moto’ da equipe de gravação. Ele também deve ter boas histórias sobre duas rodas para contar. Com direção-geral de Celso Athayde e Léo Ribeiro, o programa está disponível no Globoplay.

Ewerton de Lima, Ilda Nascimento, Edgard da Silva e Ronaldo Soares: motoboys têm nome, sobrenome, histórias e uma vida a ser preservada
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Foto: Reprodução/TV
Desprezados e mal pagos, os entregadores são imprescindíveis para o funcionamento de uma grande cidade como São Paulo
Foto: Reproduções/TV
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