Os riscos à Globo de novela protagonizada por negra evangélica funkeira

Emissora vai abordar questões sociais delicadas com ‘Vai na Fé’ na faixa das 19h

24 dez 2022 - 09h16

As chamadas de ‘Vai na Fé’, nos intervalos da Globo, destacam o dilema vivido pela protagonista Solange (Sheron Menezes). 

Hoje, é uma mulher casada e recatada, zelosa dos preceitos da religião evangélica. Com marido desempregado, sustenta a família vendendo quentinhas no subúrbio. 

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Ela carrega arrependimentos do passado, quando fazia sucesso dançando funk e era famosa como ‘princesinha Sol’. Um erotismo inaceitável por sua religião. 

Na luta pela sobrevivência dos parentes humildes, Solange precisa se expor ao mundo secular e, consequentemente, resistir às tentações da carne. 

A novela criada por Rosane Svartman, autora de sucessos na Globo (‘Bom Sucesso’, ‘Totalmente Demais’) estreia em 16 de janeiro sob grande expectativa. 

O primeiro desafio é enfrentar o número mais baixo de aparelhos de TV ligados no início do ano, época das férias escolares e de muitas famílias fora de casa. 

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Terá dificuldade extra de atingir a audiência desejada para a faixa das 19h (média de 25 pontos) por herdar o fraco desempenho de ‘Cara e Coragem’. 

A trama das idênticas Clarice e Anita (Taís Araújo), no ar desde maio, não empolgou os noveleiros. Vai terminar com a insatisfatória média de 21 pontos.

Solange, a Sol: mãe de família, evangélica fervorosa e dançarina de funk
Solange, a Sol: mãe de família, evangélica fervorosa e dançarina de funk
Foto: Reprodução

‘Vai na Fé’ apresenta outros obstáculos. A começar pela questão racial. O núcleo principal conta com vários atores negros. Parece exagero temer risco de rejeição, mas não é. 

A teledramaturgia global possui um histórico complicado de resistência a protagonistas pretos. O caso exemplar é a Helena do folhetim das 21h ‘Viver a Vida’ (2009), vivida por Taís Araújo. 

Coincidentemente, a mesma atriz interpretou a heroína negra mais bem-avaliada da emissora, Preta, de ‘Da Cor do Pecado’ (2004), às 19h. 

Em 2015, ao comentar na GloboNews a estrondosa reação contra a novela ‘Babilônia’, Fernanda Montenegro tocou na ferida do preconceito. 

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“É a primeira novela em que dois terços do elenco é de atores negros, que não são subservientes, que ascendem por um esforço próprio enorme, e que se casam de uma forma muito miscigenada”, observou a atriz. 

“... ninguém vai falar porque o preconceito de raça realmente dá cadeia; então querem ver o negro não sei onde, um caso aqui outro ali numa novela, mas uma frente de negritude ganhando espaço numa novela das nove? Nunca houve e ninguém fala isso.” 

Após recorrentes críticas pela falta de representatividade (o caso mais gritante foi o de ‘Segundo Sol’, com elenco predominantemente branco apesar de ser ambientada na Bahia), a cúpula da Globo adotou a diversidade racial como princípio. 

Vai insistir em papéis principais com artistas negros. A próxima novela das 9, ‘Terra Vermelha’, também terá uma atriz preta como protagonista. 

O outro obstáculo de ‘Vai na Fé’ é retratar os evangélicos sem ofendê-los — como a Globo fez com a minissérie ‘Decadência’, sobre um pastor neopentecostal explorador de fiéis, em 1995 — e tentar atrair esse perfil de público avesso à televisão. 

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A maioria das igrejas protestantes proíbe seus discípulos de ver novelas. Muitos pastores enxergam o progressismo das tramas da Globo como uma ameaça demoníaca. 

Com o crescente número de convertidos no País, a emissora não pode mais ignorá-los ou travar uma guerra ideológica, como fez na década de 1990 contra o bispo Edir Macedo, líder da Igreja Universal do Reino de Deus e dono da Record, sua maior rival no Ibope. 

Para fidelizar uma nova geração de telespectadores e manter a liderança confortável, o canal da família Marinho precisa agradar a uma parte dos 30% de evangélicos da população brasileira. Há projeção de que eles serão a maioria religiosa em 10 anos. 

‘Vai na Fé’ enfrentará ainda a resistência à cultura do funk. Atualmente, o ritmo tipicamente carioca é o mais popular, ao lado do sertanejo, porém, está longe de agradar a todos. 

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Ao ver sua família à beira da miséria, Solange vai contornar os dogmas evangélicos e buscará o pão de cada dia fazendo shows de funk. Ousadia inimaginável a uma crente da vida real. 

Com essa interessante proposta dramatúrgica, ‘Vai na Fé’ merece a atenção do telespectador. Veículo de entretenimento de massa, a televisão precisa de roteiros assim, menos óbvios e com temas sociais relevantes. 

Sol vai do coro da igreja evangélica ao palco onde dança o batidão do funk
Foto: Reprodução
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