Com a estreia da nova versão de Vale Tudo, nesta segunda-feira, 31, uma pergunta é pertinente: Para quem, atualmente, são feitos os remakes de telenovela? Para público 40+, telespectador da versão original e sempre saudosista? Para os mais jovens, que conhecem memes de Odete Roitman e talvez não encontrem mais sentido em esperar quase 200 capítulos para saber o desfecho da trama? Ou, ainda: como unir e agradar esses diferentes tipos de público?
O Estadão ouviu especialistas, entre eles, a autora de Vale Tudo, Manuela Dias (leia mais abaixo), em busca de resposta. A questão, no entanto, é que os remakes fazem parte da produção audiovisual, seja no cinema ou na TV.
As emissoras trabalham com diferentes variáveis para se decidirem por um remake, de acordo com o consultor em teledramaturgia Mauro Alencar. "Pode ser um texto clássico que se perdeu no tempo. Ou porque as fitas originais queimaram em incêndios costumeiros nas décadas de 1960 e 1970. Ou porque as fitas foram apagadas. Ou porque o original foi produzido em preto e branco e a empresa quer refazer em cores para uma nova geração. Ou porque a empresa quer vender para o mercado estrangeiro e precisa de nova tecnologia (de produção)", enumera Alencar.
O especialista vai além, e cita o motivo que ele considera mais complexo: "O gênero/formato passa por desgaste de criatividade".
O caso de Vale Tudo é peculiar: trata-se de um dos principais sucessos da televisão brasileira de todos os tempos. A trama, escrita originalmente por Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Basséres, que debateu ética e corrupção no Brasil pós-redemocratização, foi escolhida para comemorar os 60 anos da TV Globo, a serem completados em abril. A responsabilidade, então, é grande - e a repercussão, alimentada pela própria emissora - começou meses antes, nas redes sociais.
Há outra ponderação importante. Diferentemente do que ocorreu com os remakes de O Astro (2011) e Saramandaia (2013), duas novelas clássicas que ganharam releituras, Vale Tudo original está disponível completa no Globoplay. O Astro original só entrou na plataforma em novembro de 2024 e a preservação de Saramandaia de 1976 nos arquivos da emissora ainda é um incógnita para os noveleiros. Diante desses fatores, por que assistir à nova versão de uma novela?
Mauro Alencar
Consultor e Doutor em Teledramaturgia pela USP, autor de 'A Hollywood Brasileira - Panorama da Telenovela no Brasil', entre outros títulos
"Tendo como base a psicologia da mídia, o público saudoso não precisa de remake porque ama o original (seja uma novela como Irmãos Coragem ou um filme como Rebecca). Então, é natural que esse público vá matar a sua saudade no original. Para um novo público, sim. E vez ou outra há a fusão dos dois. Mulheres de Areia, A Viagem, A Gata Comeu (A Barba Azul, na Tupi), Éramos Seis (versão do SBT) e Pantanal (Globo) conseguiram mobilizar tanto a audiência saudosa do original (especialmente as novelas da Tupi) quanto impulsionar a nova audiência. Algumas novelas citadas foram propícias para a inclusão de temas atuais, caso de Mulheres de Areia, A Viagem e Pantanal: Praias poluídas, questões religiosas, ecossistema e crise climática.
Mas, 'se encontrar no meio disso é tarefa árdua, pois como dizia Ivani Ribeiro em mais de um café que saboreei em sua residência durante o meu mestrado na USP: "Escrever um remake é como fazer uma novela nova e ainda mais difícil". Sim, pois há a memória afetiva do público com os atores. Além disso uma novela é produzida no calor da hora, em um determinado tempo e espaço e com os personagens sendo escritos para (e em conjunto) com os atores sob a óptica de um diretor.
Vou assistir ao filme Branca de Neve em nova tecnologia. Mas a versão original da Disney certamente é insuperável".
Manuela Dias
Autora do remake de 'Vale Tudo'
"Histórias que sobrevivem são as que são recontadas. Isso forma a identidade do País. Ao contar e recontar sobre o descobrimento do Brasil é que entendemos que ele não foi descoberto. Vale Tudo é uma história identitária do Brasil. Quem já a assistiu terá um grande reencontro. A novela terá frases icônicas da primeira versão, easter eggs (elementos ou citações 'escondidos')... Não faz sentido fazer um remake de ET e não colocar ele cruzando a lua de bicicleta".
Paulo Silvestrini
Diretor-geral do remake de 'Vale Tudo'
"Quando eu leio um clássico, sempre tenho a impressão que o estou lendo pela primeira vez. É isso que faz dele um clássico. A telenovela brasileira, Vale Tudo em especial, traduz o que podemos entender como uma obra clássica da teledramaturgia. Vista à luz da contemporaneidade, ela permanece jovem, atual. Isso é um bom motivo para entrar em contato novamente com essa obra. Que pessoa sou eu e que outras pessoas são essas que recriam essa obra, neste momento? Para um público desejoso de consumir um obra audiovisual, Vale Tudo é uma grande experiência, uma grande oportunidade para isso".
Luís Melo
Ator, interpreta Bartolomeu no remake de 'Vale Tudo'
"O remake faz parte de um processo nostálgico, dos grandes sucessos da televisão, de revisitar algo que segurou o público na frente da TV. O público de TV, que é diferente do teatro, precisa assistir a coisas de muita boa qualidade. Ele gosta da novela tradicional. Toda vez que a Globo reprisa O Cravo e a Rosa é sucesso. Já conhecem a história de trás para frente, mas há o prazer de assistir. O mesmo ocorre com O Auto da Compadecida. Veja o fenômeno que está ocorrendo com as novelas turcas e coreanas. Aqui no Brasil, estamos indo para algo muito realista, e não sei se o público está acostumado a isso".
Lucas Martins Néia
Roteirista, doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo e autor do livro 'Como a Ficção Televisiva Moldou um País'
"É interessante trazer uma produção do passado e apresentá-la para novas gerações, atualizar as discussões que aquela produção propôs, e ao mesmo tempo, às vezes, até se evidencia que as discussões propostas em um outro período histórico ainda são pertinentes. Por outro lado, passa-se uma impressão de que não há nada de novo no front. Fala-se muito em certa crise de criatividade, mas que, de alguma forma, por trás do que seria justamente essa crise, há os executivos que têm medo de apostar em algo novo. Não vemos as emissoras e os serviços de streaming dispostos a arriscar em um cenário de competitividade acirrada.
Claro, nada é certeiro, mesmo essas obras que parecem que têm tudo pra fazer sucesso porque são releituras de sucessos do passado, também podem não render aquilo que os players esperam. Vide o remake de Elas por Elas. O de Renascer conseguiu manter um patamar interessante para o horário das nove, mas talvez não tenha tido a repercussão que a Globo gostaria, pensando no sucesso que foi Pantanal".
Ana Maria Moretzsohn
Autora de telenovelas como 'Estrela Guia' e 'Esplendor' e colaboradora do remake de 'Saramandaia'
"Os remakes têm essa dupla função: agradar os fãs da época em que a novela foi ao ar e resgatar noveleiros que sempre ouviram falar bem de uma novela, mas nunca assistiram. O público muda, mas não tanto. Uma boa história pode e deve ter uma releitura. A prova disso é a quantidade de filmes em cima de clássicos, que têm várias versões, sempre bem-vindas".
Ana Paula Gonçalves
Pesquisadora, autora do livro Brasil, 'Mostra Tua Cara: Vale Tudo, A Telenovela que Escancarou a Elite e a Corrupção Brasileira'
"Remake é um risco muito grande, especialmente quando se trata de uma obra de muito sucesso. Como estudante de telenovela, não posso deixar de dizer que tivemos remakes muito importantes, como A Viagem e Mulheres de Areia - e muitos nem lembram que elas são remakes. Mesmo quem diz que não vai assistir Vale Tudo vai ter certa curiosidade, nem que seja para falar mal. Brasileiro gosta muito disso. João Ubaldo Ribeiro dizia que tinha dois tipos de público: o que lia a crônica dele religiosamente todo o domingo para falar mal dele e outro para dizer que concordava com tudo. E isso ocorre muito com a novela".