Independentemente de você ser audiência cativa ou não, só o fato de habitar os rincões da internet brasileira já te deixou em contato com algo do programa 'Casos de Família', do SBT. Memes com a apresentadora Christina Rocha, rumores de que os casos eram armados, vídeos de brigas, momentos hilários ou aquela clássica montagem do 'Casos de Família' ao som de 'Sweet Dreams' evidenciam o sucesso da atração, que ficou 18 anos no ar.
Na última terça-feira, 23, o SBT anunciou, por meio de comunicado, o cancelamento do programa.
"Parece que tinha arrancado uma coisa de mim", comenta a psicóloga Anahy D'Amico, que está no programa desde o início, em 2004, quando ainda era apresentado por Regina Volpato e não tinha um conselheiro terapêutico fixo.
Em entrevista exclusiva ao Terra, a psicóloga entrega que foi pega de surpresa pelo final do programa, mas se diz grata pela oportunidade de participar de um projeto tão "humano".
"Foram muitos temas que deixaram a gente sair da gravação extremamente mexidas, porque a gente sentiu uma impotência. A gente vê como a sociedade está adoecida em muitos pontos; como os relacionamentos estão estranhos, sem respeito", acrescenta.
Leia abaixo a entrevista na íntegra.
Terra: Você está no programa desde quando ele ainda era apresentado por Regina Volpato. Como avalia todos esses anos de 'Casos de Família' no ar?
Anahy D’Amico: Eu tô desde o início. Entrei em 2004, numa época em que cada dia era um psicólogo diferente, até que eu recebi a proposta pra ficar fixa. Depois de cinco anos, entrou Christina Rocha e ficamos treze anos juntas. E, realmente, ninguém imaginava que esse programa ficasse tantos anos no ar. É um programa muito dinâmico, muito curioso, que misturava coisa alegre com coisa triste, com coisa chocante. Acho que tinha um efeito muito catártico. As pessoas viam o que acontecia no programa e falavam: "Não, a minha vida é muito boa perto disso que eu estou vendo". As pessoas acabavam tendo acesso a realidades que elas nem sonhavam que existiam. Acho que o encanto do programa era esse.
Você tinha contato com os participantes do programa depois que a edição era gravada? Chegava a atendê-los ou eles mesmos te procuravam?
Não, eu não tinha contato com os participantes. Eles chegavam e ficavam em salas, em camarins separados. A gente só se via na hora que entrava para o programa. Quando eu entrava, eles sempre falavam: "Doutora, depois dá pra bater um papinho, ter um uma conversa com a senhora, tal?". E sempre no final do programa eles vinham falar comigo, muitas vezes chorando, pedindo ajuda ou pedindo atendimento. Isso sempre aconteceu, mas antes [do programa] não tinha nem como, porque a gente ficava em lugares diferentes.
"A gente pegou muitos casos combinados, mas não era combinado o programa. Eles se combinavam por farra, pelo cachê, pra poder ir pra televisão"
Quando você percebeu que o 'Casos de Família' era tão querido pelos telespectadores?
Eu nunca tinha trabalhado em televisão. Demorei pra ir pela primeira vez, porque eles ligavam para o consultório em busca de psicólogos diferentes, porque, como eu disse, antes era um por programa. Então, demorei um pouquinho pra ir, mas eu não tinha muita noção das coisas. Eu ia lá, gravava o programa, vinha embora e tinha meu consultório, os meus trabalhos. Conforme o tempo foi passando, fui vendo a popularidade que eu estava ganhando, que eu nem imaginava. Através das redes sociais, Instagram e canal do YouTube, quantas pessoas vinham falar que não perdiam o programa, que tinham muito carinho por mim, pela Christina; que adoravam, se divertiam, choravam e se viam naquela situações; acabavam se identificando com muitos problemas. A gente falava de tudo: de traições, de infidelidade, de conflitos familiares, vícios… São problemas que as famílias têm. Então, realmente, as pessoas se identificavam muito. E quando viam coisas assim, muito chocantes ou muito absurdas, elas falavam "Poxa minha vida é boa".
Como vê a viralização do "Tema de hoje" como meme nas redes sociais, além de outras situações inusitadas do programa?
Os temas realmente eram sensacionais. O dia que eu vi o tema "Eu tomo tanta pílula do dia seguinte que eu já estou no ano de 2052", fiquei rindo meia-hora. Eles tinham uma criatividade pra criar esses temas, então era realmente óbvio que ia virar meme. Eu virei meme aí quinhentas mil vezes.
Muitas pessoas insistiam em dizer que o programa era "armado". Você participava da seleção dos casos? Como você se preparava para dar os conselhos adequados a cada caso? Era na hora ou havia uma preparação antes?
Sempre disseram que era armado. Isso é a primeira coisa que as pessoas me perguntam. Chegava uma hora até que a gente ficava chateada. Se vocês tivessem ideia do que era para preparar um programa. Os meninos iam para as comunidades, os estagiários entrevistavam as pessoas, os vizinhos. Depois iam para o SBT, participavam de uma seleção, eram entrevistados juntos e separadamente, pra ver se não caíam em contradição. Agora, as pessoas nunca entenderam que a equipe toda que fazia esse trabalho não tem bola de cristal. A gente pegou muitos casos combinados, mas não era combinado o programa. Eles se combinavam por farra, pelo cachê, pra poder ir pra televisão. Eu nunca participei da seleção. Sempre cheguei lá no dia pra gravar e às vezes eu não sabia nem o tema. Tudo que eu falava era do que eu captava lá na hora. Às vezes até trocava o tema, porque a história acabava indo para outro rumo. Iam falar de briga, de vizinho, acabavam falando de traição e mudava o tema. Era uma coisa tão dinâmica que não tinha nem como armar, não tinha como decorar um texto daqueles.
"O dia que eu vi o tema 'Eu tomo tanta pílula do dia seguinte que eu já estou no ano de 2052', eu fiquei rindo meia-hora. Óbvio que ia virar meme"
Tem alguma história ou participante que tenha te marcado, ou de alguma forma feito perceber como a nossa sociedade estava adoecida?
Ah...! Muitos casos me marcaram. Os casos de rejeição a filhos, de homofobia, aquele tratamento com desprezo da família… Sempre foram programas muito dolorosos da gente gravar. Mães que falavam abertamente que não amavam os filhos, que não queriam os filhos. Ou programa de filhos que maltratavam as mães... Não dá nem pra indicar um, foram muitos temas que deixaram a gente sair da gravação extremamente mexidas, porque a gente sentiu impotência, a gente vê como a sociedade está adoecida em muitos pontos, como os relacionamentos estão estranhos, sem respeito. Pessoas que ficam com pessoas que fazem mal, relacionamentos altamente tóxicos, pessoas tóxicas e sem ter a menor noção daquilo. A luta da gente sempre foi para que eles despertassem, para que eles vissem, para que depois que assistissem ao programa vissem como eles falam, como eles agem, porque às vezes se vendo tem um impacto diferente.
Considerando todos esses anos de vivência no programa, quais você percebe que são os maiores problemas do brasileiro, em se tratando de relações interpessoais e familiares, aliadas à saúde mental?
A gente sempre detectou muitos problemas sociais, falta de escolaridade, falta de segurança. Todos os dilemas familiares: meninas tendo filhos muito cedo, engravidando na adolescência; mães que tinham que trabalhar e não tinham nem como ficar atentas a muitas coisas, porque se preocupavam com a sobrevivência; problema das drogas… Infinitos problemas a gente detectou. O que eu achei uma grande sacada foi que eu atuava como conselheira no programa, eu só dava conselhos, mas eles viram que tinham os sentimentos acolhidos. Eles eram ouvidos e havia toda uma preocupação em ajudá-los a resolver esses conflitos, a melhorar a convivência, a tomar decisões que fizessem sofrer menos, não ficar em relacionamentos abusivos, procurar emprego, ter uma independência… Realmente, a gente viu muitos problemas.
"Sempre cheguei lá no dia pra gravar e às vezes eu não sabia nem o tema. Tudo que eu falava era do que eu captava lá na hora"
Como você se sente agora, com o fim do programa? Afinal, foram 18 anos de programa diário, uma vida dedicada à atração.
Ficou um vazio muito grande, porque há dezoito anos que eu fazia isso Fiz muitos amigos que vieram comigo no coração e vamos nos encontrar, mas aquela rotina era uma rotina gostosa. Sempre fiz esse programa com muito prazer. Sempre achei tudo muito interessante, muito humano. Realmente eu vi o quanto dava pra ajudar, porque não acabava lá. As pessoas entravam em contato comigo, mandavam e-mail, mandavam mensagens. Realmente, foi muito gratificante pra mim. E só de pensar que agora, já essa semana... Porque foi muito assim: acabou, nem grava mais e é fim... Parece que tinha arrancado uma coisa de mim. Mas eu só tenho gratidão em relação à oportunidade que eu tive, ao crescimento que eu tive. É gratificante as pessoas virem, me darem carinho, me abraçarem, falarem do quanto tiveram ajuda através do meu trabalho no programa, através do programa em si. Acho que eu vou sentir muita falta. Vai demorar um pouquinho pra acostumar que não tem mais.
Quais são seus planos para o futuro? Tem algo já encaminhado na televisão ou na internet, por exemplo?
Eu estou aberta ao que vier. Quando um ciclo se fecha, outro se abre, outro começa, recomeça, então estou aí aberta. Tenho o meu canal no YouTube, tenho projeto de um novo livro, eu tenho o meu curso online que é 'A Jornada da Transformação', tenho os meus atendimentos. Tenho bastante coisa e aberta pra tudo mais que vier.
*Com edição de Estela Marques.