Acontece mais uma vez. Um participante negro do ‘Big Brother Brasil’ gera repercussão estrondosa sobre negritude fora da casa. A modelo e designer de unhas Natália, de 22 anos, deu uma declaração assustadoramente equivocada.
“Sou preta e, realmente, tem a história que viemos como escravos sim, porque a gente era eficiente. Por que a gente veio como escravo? Porque a gente era bom no que a gente fazia. Porque a gente veio como escravo? Colocar uma pessoa lá para fazer não conseguiria”, disse em conversa com outros confinados.
A sister parece ter tido a intenção de elogiar a força dos antepassados, porém, seu pensamento se assemelha ao de um colonizado conformado. Ninguém deve ser capturado e escravizado por ser forte e capaz. Sem querer, Natália criou uma justificação irrealista e inaceitável para o comércio de 5 milhões de negros e negras da África ao Brasil.
O argumento da competidora foi contestado por historiadores, escritores do tema, militantes antirracistas e artistas. A polêmica ocorre no rastro das reações contundentes contra um artigo do antropólogo Antonio Risério na ‘Folha de S. Paulo’, no qual defendeu a existência e o recrudescimento do racismo reverso, ou seja, a discriminação de pretos contra brancos, no Brasil atual.
Questões raciais passaram a ser comuns no ‘Big Brother Brasil’. Alguns episódios merecem ser relembrados. No ‘Big 21’, um comentário do sertanejo Rodolffo a respeito do cabelo black power do professor João, o comparando à cabeleira desgrenhada de um homem das cavernas, gerou choro do brother negro e uma valiosa conversa ao vivo, conduzida pelo apresentador Tiago Leifert, a respeito de identidade negra, racismo estrutural e brincadeiras discriminatórias que muita gente faz ‘sem querer’.
Na vigésima edição, a médica Thelma Assis relatou episódios de racismo – desde a faculdade, quando era a única negra da turma, até no tratamento de pessoas que não a enxergavam e respeitavam como uma doutora. Vista na maior parte do tempo como ‘planta’, foi acusada de se aproveitar da popularidade de amigas brancas no reality show para chegar até a final. Ao vencer o programa, houve quem disse que só se tornou campeã porque o público teria votado de maneira politicamente correta sob a influência do movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam).
No ‘BBB19’, Paula Von Sperling disparou vários comentários associados ao racismo institucional. Usou a palavra “carvão” ao se referir a negros retintos e a expressão “cabelo ruim” para falar de fios crespos. Questionada, incorreu no erro ao alegar ser adepta de “humor negro”. Em outro momento, disse ter ficado surpresa ao ver que um homem acusado de feminicídio era “branquinho” e não um “favelado”. Apesar da sequência de impropérios, ela não foi exemplarmente repreendida pela direção do reality show e acabou campeã.
A ativista do movimento negro Nayara, no ‘BBB18’, foi surpreendida com um estranho discurso de eliminação feito por Tiago Leifert. O apresentador disse que ninguém na casa era representante de causa alguma nem de nenhum grupo. A sister saiu com quase 93% de rejeição. O tempo mostra que sua postura militante irritou parcela do público e até profissionais que fazem o reality.
No ‘BBB17’, Gabriela Flor se tornou vítima de piadas racistas por seu cabelo crespo volumoso. Na décima sexta temporada, a produção foi questionada por colocar um boneco-esponja de louça com black power. No ‘BBB15’, um exemplo de autorracismo: Luan sugeriu a outro brother, negro assim como ele, que “roubasse” uma colcha. “Sabe que preto é f*da”, disse. Refutado, insistiu. “Preto é safado.”
Um dos momentos mais tensos da história da atração aconteceu no ‘BBB12’. O modelo Daniel Echaniz foi expulso sob suspeita de ter cometido abuso sexual contra Monique Amin. Imediatamente surgiu a suspeita de racismo. Público e imprensa questionaram: se fosse um rapaz branco, teria sido sumariamente retirado do reality sem uma investigação detalhada? Após o estrago na imagem e na saúde mental do rapaz, o inquérito policial acabou arquivado por falta de provas.
Mais casos poderiam ser citados. A experiência socioantropológica do zoológico humano do ‘Big Brother’ aflora o melhor e o pior de cada competidor. Em momentos de descontração ou tensão, quando o jogador não está tão concentrado, deixa evidentes suas falhas, entre elas, os variados tipos de preconceitos: racismo, homotransfobia, machismo, misoginia, capacitismo, ageísmo, repulsa a pobres etc.
Nas primeiras edições, no início da década de 2000, palavras e comportamentos discriminatórios eram mais tolerados pela Globo e os telespectadores. Com o avançar da conscientização, ‘passar pano’ deixou de ser opção. Hoje, o famigerado ‘BBB’ frequentemente gera reflexão coletiva a respeito dessas questões tão pouco discutidas em casa, na escola e nos ambientes corporativos.
A partir do que acontece no confinamento, discute-se o combate à intolerância intrínseca do ser humano e, em alguns casos, como o de Natália, à desinformação histórica e ao autoengano. O programa não é capaz de mudar a sociedade, mas oferece relevante contribuição.