Ano após ano, o Dia da Consciência Negra suscita discursos contra o racismo. Vista como nação mais miscigenada do planeta, com 56% de pretos e pardos, o Brasil está entre os Países mais racistas. Contradição assombrosa.
Na TV, as novelas ainda têm elenco majoritariamente branco. Até pouco tempo, atores negros eram escalados somente para papéis coadjuvantes estereotipados, como o de empregada doméstica e assaltante.
As mudanças acontecem em ritmo lento. Ainda estão longe de produzir a necessária proporcionalidade de representação e dar a devida valorização aos artistas pretos.
Alguns personagens de novelas da Globo geraram debate social a respeito da discriminação.
Helena, 'Viver a Viva', 2009-2010
Havia entusiasmo com a primeira Helena negra do autor Manoel Carlos. Após a icônica Xica da Silva na TV Manchete, Taís Araújo chegava ao protagonismo na novela das 21h da emissora líder no Ibope.
Deu errado. A modelo foi rejeitada. "As pessoas não aceitaram ela já começar a história tão bem-sucedida", explicou a atriz.
"O autor quis escrever uma personagem negra e rica sem justificar o caminho dela. Simplesmente ela é. Só que naquele Brasil lá de trás, era muito esquisito."
O fato de Helena ter feito um aborto na juventude para não prejudicar a carreira em ascensão contribuiu para ser alvo do desprezo de relevante parte do público.
Sob críticas, Taís sofreu emocionalmente nos bastidores. "Fiquei frustrada", disse. "Eu achava que era a grande chance, não só minha, como de toda a população negra. 'Eu vou fazer e virão um monte de protagonistas negros'."
Não aconteceu.
Kennedy, 'Pátria Minha', 1994-1995
Uma sequência do folhetim chocou o Brasil. O vilão Raul Pelegrini (Tarcísio Meira) acusa o jardineiro Kennedy (Alexandre Moreno) de roubar um cofre de sua mansão.
Chorando, o rapaz nega. "Seu negro insolente", dispara o empresário racista. "Você pensa que eu acredito em crioulo? Vocês, quando não sujam na entrada, sujam na saída", diz. "Negro sem vergonha! Vai se arrepender do dia em que nasceu! Negro!"
A discriminação violenta tirou os telespectadores da letargia. Houve ruidosa crítica contra o autor Gilberto Braga.
Ativistas do movimento negro contestaram a passividade de Kennedy, que se comportou como um escravo submisso diante de seu 'dono'.
Não houve a necessária compreensão de que se tratava de uma denúncia, um retrato do que ocorre diuturnamente na vida real.
A intenção era justamente provocar, induzir o público a refletir sobre o racismo que ele próprio pratica sem se dar conta.
A Globo chegou a ser questionada na Justiça por alguns advogados e militantes da causa antirracista.
André, 'Insensato Coração', 2011
Gilberto Braga quis provocar mais uma vez. O galã da trama, André, era negro. A direção escalou Lázaro Ramos para o papel.
Parcela significante dos telespectadores reprovou a escolha. Diziam não ser crível um "negro sem beleza" ser irresistível a ponto de levar para a cama todas as mulheres que cruzavam seu caminho.
As críticas e o deboche contra o poder de sedução de André dizem muito, até hoje, a respeito da sociedade brasileira.
O homem negro é avaliado bonito somente quando tem cabelo liso ou cabeça raspada (para disfarçar os fios crespos), nariz fino e físico malhado que atende ao fetiche do homem viril e selvagem no sexo.
Sônia, 'Corpo a Corpo', 1984-1985
Zezé Motta interpretava uma personagem de destaque. Fazia par romântico com Marcos Paulo (Claudio). As cenas de beijo na boca provocaram revolta em parte do público.
"Foi uma surpresa super desagradável para todos nós. O Marcos chegava em casa e tinham recados na secretária eletrônica dele. Recados desaforados, revoltados, agressivos, dizendo: 'Eu não acredito nesse casal, você beijando aquela mulher horrorosa'", relembra a atriz.
Uma das mensagens deixou Zezé especialmente abalada. "Teve um homem que foi horrível... Ele falou: "Se a Globo me obrigasse a beijar essa negra feia, eu lavaria a boca com água sanitária quando chegasse em casa'."
Apesar das manifestações racistas, a conexão entre os atores foi tão forte que a artista se apaixonou pelo colega de trabalho. "Rolava um clima, parecia que algo ia acontecer", conta. Mas não virou romance.
'Corpo a Corpo' também foi escrita pelo provocador Gilberto Braga.
Otto, 'Baila Comigo', 1981
No folhetim criado por Manoel Carlos, Milton Gonçalves vivia um homem que se casava com uma viúva, mãe de dois filhos.
Eles tinham um casamento feliz, porém, nunca havia cena de afeto. Eram tempos de forte resistência a um casal interracial na TV.
“Tanto os negros quanto os brancos me diziam: ‘Você é casado com uma branca na novela, mas ela não te beija na boca. De que adianta?’”, relatou Milton em uma entrevista.
Ao saber de tal cobrança, Beatriz Lyra, que fazia a esposa de Otto, decidiu agir sem contar nada a ninguém.
“Numa cena, Beatriz me puxou e me deu um beijo na boca, sem língua, mas com muito carinho. Todo mundo no estúdio ficou olhando, assustado, porque não estava previsto (no roteiro)", lembrou o ator.
Nos dias seguintes, quando saiu às ruas, Beatriz Lyra foi hostilizada por ter beijado um ator negro no horário nobre da televisão.
Tomás, 'A Cabana do Pai Tomás', 1969-1970
Trata-se de uma das maiores vergonhas da história da Globo. Baseada em um romance norte-americano, a novela era protagonizada por um escravo.
A emissora escalou o branco Sérgio Cardoso, galã da época. Ele usou o recurso do blackface (pintar o rosto com tinta preta) para interpretar o personagem.
O visual era completado com peruca de cabelos crespos (feita com palha de aço) e pedaços de rolha para alargar as narinas.
Equivocado, o artista falava e se movimentava de maneira estereotipada, representando o negro simples como uma pessoa selvagem.
A Globo foi merecidamente criticada. Parceira em cena de Sérgio Cardoso, no papel da escrava Cloé, a lendária Ruth de Souza sofreu discriminação nos bastidores.
Algumas atrizes brancas protestaram ao ver o nome dela sendo exibido primeiro na vinheta de abertura da novela. Não aceitavam que uma atriz negra tivesse tanto prestígio.