Cozinhar, ainda que corriqueiro, é um ato sublime. Afinal, são necessárias sabedoria ao escolher ingredientes, coragem ao mesclar sabores, paciência ao cozer, humildade ao servir e, acima de tudo, entrega. “Eu posso não falar a mesma língua que as pessoas que estou servindo, mas quando elas provam minha comida, imediatamente me conhecem e sentem tudo de mim que coloquei naquele prato”, reflete Alessandra Montagne, chef que está à frente dos badalados “Nosso” e “Tempero” -- ambos em Paris.
Ela é a única brasileira a estar à frente de um restaurante no Museu do Louvre. Já trabalhou em grandes eventos na Europa, como o Festival de Cannes e jantares presidenciais. Mas tal qual uma sobremesa de mil folhas, a história de Alessandra Montagne tem muitas camadas.
Nascida no Rio de Janeiro, foi levada aos oito dias pelos avós para Poté, município de pouco mais de 13 mil habitantes no interior de Minas Gerais. Na infância, a cozinha e a roça até começaram como passatempo, mas foi vendendo coxinha na porta de uma escola que ela conseguiu comprar passagens para São Paulo. Na capital paulista, ligou para a mãe, que já morava em Paris, e recebeu as passagens para que ela aprendesse francês em uma temporada de seis meses na Europa. A cidade, entretanto, lhe guardava outro destino.
“Sei bem o que é nascer sem privilégio nenhum, em todos os sentidos. Tive que me esforçar muito mais para chegar aonde queria. Mas disso eu nunca tive medo: correr atrás, fazer acontecer. Não existe receita [para o sucesso], mas o ingrediente é a determinação”, diz.
"Cresci na roça, colhendo da horta, aprendendo a cozinhar desde muito pequena. Eu tinha que subir no banquinho para alcançar o fogão!"
Na França, começou a cozinhar para amigos. Foi com o incentivo deles que acabou se matriculando na Médéric, escola de cozinha e hotelaria da capital francesa. Mais tarde, ganhou um curso de confeitaria por ser a melhor aluna da sala. Formada, trabalhou nos restaurantes de Adeline Grattard, chef francesa que acabava de receber sua primeira estrela Michelin com o franco-chinês Yam’Tcha e com William Ledeuil, que também tem uma estrela Michelin e é apaixonado pelos países asiáticos como a Tailândia. Juntou então uma reserva financeira e abriu o “Tempero”, fora da rota de turismo parisiense, mas que vive lotado desde o primeiro dia. O sucesso acabou chamando a atenção de Alain Ducasse: depois de conferir sua comida, ele estranhou tanta qualidade fora do centro da cidade. E começou a convidá-la para fazer trabalhos com ele.
Um parceria de sucesso
Ainda que tenha uma história de vida cinematográfica, a carioca com jeitinho de mineira não quer ser refém do próprio enredo. Ducasse já era próximo dela quando soube de sua vida pregressa por meio de uma publicação no jornal Le Monde. “Ele me ligou orgulhoso”, relembra.
Em 2022, quando Alessandra já assinava, ao lado de Ducasse, o cardápio de grandes eventos para personalidades, ministros “e uma turma super VIP”, publicou o livro “Ma Cuisine de Coeur: De Rio à Paris” (numa tradução livre, “Cozinha do Meu Coração: Do Rio a Paris”), que narra a sua história. A obra, que ainda não tem previsão para publicação aqui no Brasil, ganhou o prêmio La Mazille, no Salão do Livro de Gastronomia do Périgord.
O “abraço” de Ducasse segue confortando e catapultando a carreira da brasileira. Recentemente, o francês a convidou para comandar um dos restaurantes do novo complexo gastronômico do Museu do Louvre, em Paris. O projeto ainda é mantido em segredo, mas o que se sabe é que a parceria com o grupo inglês WSH conta com os chefs Florent Ladeyn (do Auberge du Vert Mont, que tem uma estrela Michelin), Vivien Durand (do Le Prince Noir, que tem outra estrela Michelin), Jessica Préalpato (eleita melhor chef pâtissière do mundo em 2017) e os padeiros Pascal Rigo e Arnaud Chevalier, além é claro, de Alessandra Montagne. A inauguração está prevista para o começo de 2025.
O “Nosso” e o “Tempero” seguem abertos em Paris, mas também há planos de expandir sua assinatura em um hotel boutique em Valência, na Espanha. “Quando me disponho a fazer alguma coisa, eu luto, luto, luto, até chegar lá. Pra mim não tem porta fechada. Se está fechada, eu entro pela janela”, diz.
Os estabelecimentos de Alessandra também saem na frente quando o assunto são políticas ambientais e progressistas. O próprio governo francês se orgulha de assinar um decreto que obriga todos os restaurantes da França a terem sua própria compostagem, mas o “Nosso” e o “Tempero” já tinham a tecnologia há anos. “Minha cozinha sempre foi desperdício zero porque aprendi na roça a aproveitar os alimentos por inteiro. E sempre tive composteira, por exemplo. Hoje tenho uma bem grande do lado de fora”, conta. Outro exemplo de sustentabilidade é a própria mucilagem do cacau. O que normalmente é jogado fora vira ingrediente indispensável nos pratos servidos nos restaurantes.
Dinâmica plural
O “Nosso” trabalha apenas com menu degustação, enquanto o “Tempero”, com preços acessíveis. Os pratos dependem da sazonalidade dos ingredientes, que são comprados de produtores locais. “Não faria sentido nenhum buscar o que quer que seja em outro lugar, se localmente temos acesso a tanta coisa de qualidade”, explica.
Como gestora e imigrante, Alessandra Montagne também preza pela diversidade no corpo de funcionários dos estabelecimentos. “Essa é a riqueza do meu restaurante. Tento trazer um ambiente de trabalho com muito amor e acolhimento. Às vezes é tudo que a pessoa precisa: uma única chance. É uma luta diária”, diz.
De esforço, a chef entende. Gerenciar dois restaurantes, participar de um projeto gigante no Louvre e abrir um novo estabelecimento em outro país é detalhe perto das maratonas literais das quais participa. “Já corri quatro meias-maratonas e duas maratonas. Amo correr”.
Ainda que passe a impressão de ter dias de 48 horas, ela está presa, como todos nós, ao calendário gregoriano. Por isso, preza tanto passar os finais de semana com os filhos (o engenheiro André e a sommelière Thaís), ir à ópera ou ao teatro e cozinhar “besteiras”. Sua comfort food é o coquillette, um tipo de massa miudinha que a criançada na França ama, com manteiga e queijo Comté 24 meses. “Toda vez que chego de qualquer viagem para outro país, essa é a comida que preparo”, diz.
Nos dias mais desafiadores, ela sai para caminhar e se perder pelas ruas de Paris. A sua bússola, tanto para a vida, como para as caminhadas, é a Torre Eiffel. “Eu amo esse monumento. Quando vi e subi pela primeira vez, senti algo muito forte. Esse era meu lugar. Hoje, quando olho para ela, sinto muita gratidão”, diz. Não é à toa: o monumento conseguiu extrair o melhor de Alessandra Montagne, que segue em contínua expansão.
"Eu acho muito importante também dar oportunidade de trabalho para pessoas que vêm de outro país, como eu. Consigo facilmente me colocar no lugar dessas pessoas e entender o que elas vivem e a luta diária que elas passam pra ficar aqui."