Na entrada da Feira do Livro de Frankfurt, a maior do setor editorial e que completou 75 anos, um totem da Audible chamava atenção com capas de audiolivros, entre eles a de “Salvar o Fogo”, de Itamar Vieira Junior. A ação promoveu a publicação narrada da obra. No post, em sua rede social, o autor baiano revelou que a edição alemã do livro físico estará nas livrarias da Alemanha, Suíça e Áustria em maio de 2025. E que aqui no Brasil o reconhecimento do título chegou: é vencedor do Prêmio Jabuti de melhor romance.
Cinco anos separam este feito recente de um tímido Itamar apresentando “Torto Arado”, obra que seria lançada em agosto de 2019 e marcaria para sempre sua trajetória e a história da literatura brasileira. A partir dela, que foi devorada e divulgada por diversas personalidades brasileiras — e anônimos — o autor, geógrafo por formação, conquistou prêmios nacionais e internacionais (Leya, Oceanos, Jabuti, Montluc Résistance et Liberté), viu seu texto virar musical e alcançou uma marca rara no mercado editorial brasileiro, com um milhão de livros vendidos.
Se ele imaginava? “Não. Acho que isso não passa muito pela cabeça de quem escreve, que vai atingir essa marca, ou que seu livro vai encontrar leitores, ainda mais para um escritor que não é tão conhecido. Para mim é sempre uma agradável surpresa”, diz. Desde a sua primeira publicação (também vieram “Doramar ou a Odisseia” e o recém-lançado “Chupim”, este para o público infantil), a escrita de Itamar ganhou uma proporção inimaginável que se deu, segundo ele, porque os leitores se conectaram com suas histórias.
A febre de “Torto” tomou muita gente: o romance explora a vida de duas irmãs, Bibiana e Belonisia, no sertão da Bahia, e discute temas como opressão, racismo e luta pela terra, com foco nas relações humanas e na resistência de comunidades rurais. Nada mais brasileiro.
“Essas histórias falam um pouco do Brasil, da nossa experiência, da nossa gênese e, no fundo, temos essa vontade de conhecer um pouco mais sobre nós mesmos, mesmo que seja através da ficção, que é o que eu faço”
O livro, que nasceu quando o escritor era adolescente, ficou por um tempo na gaveta e foi por ele burilado, principalmente com sua experiência como funcionário do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), onde teve a oportunidade de se aproximar de quilombolas, indígenas, trabalhadores acampados, assentados e comunidades ribeirinhas.
O reconhecimento veio no momento certo: após ganhar um prêmio em Portugal, o Leya, em 2018, chamou a atenção do mercado brasileiro e ganhou força, principalmente durante a pandemia, nas redes sociais. Se antes procurava oportunidades, agora é requisitadíssimo. “Nós não costumamos valorizar as coisas que nós temos. A literatura brasileira é de excelência, está escrevendo sobre coisas importantes, é vanguardista, e a gente não se deu conta disso. Continuamos a consumir muita literatura estrangeira.” E o caminho é mais difícil, acrescenta, se o escritor vive fora dos eixos, não tem contato com editores e críticos.
“Muitos autores passaram por coisas parecidas e hoje estão no seu devido lugar. Machado de Assis não foi uma unanimidade. Lima Barreto só conseguiu reconhecimento depois de sua morte. Carolina Maria de Jesus é estudada como escritora mais de 40 anos depois da morte dela. Jorge Amado recebia as piores críticas no Brasil e foi um dos autores mais traduzidos lá fora, porque tinha qualidade e contava uma história do Brasil que interessava aos leitores também. Sempre vai ser assim, não sou muito otimista que isso vá mudar”, analisa.
Mais conteúdo
“Tortoaraders” é um perfil do Instagram que tem quase 10 mil seguidores e é dedicado à obra do escritor. Nele estão todas as novidades de sua carreira, entrevistas, notícias, tudo que cerca o universo literário. E as redes foram um grande trampolim para que sua obra alcançasse os leitores de todo país. Para Itamar, um caminho de mão dupla. Se por um lado elas têm esse alcance no meio cultural, principalmente, e permitiu a formação de grupos de leitores, de discussões positivas, massificou a divulgação do livro, também deram espaço para extremismo. “Criaram bolhas, deram muita voz a pessoas que em outro tempo não falariam com a sociedade.”
Para ele, o melhor antídoto é a informação. E a leitura precisa ser um hábito livre, com o leitor escolhendo o próprio caminho. “O prêmio Jabuti se dividiu em duas categorias: romance de entretenimento e romance literário. Não concordo com essa divisão, mas entendo o que o prêmio quis trazer à luz muita gente que está fazendo literatura, mas não é tida como alta literatura, como um movimento literário. Acho importante ler, é assim que se começa.”
Ele, por exemplo, se deparou com a obra de Machado de Assis no início da adolescência e foi arrebatado. Visitava duas bibliotecas em Salvador, uma em que pedia o título no balcão e outra, no bairro do Rio Vermelho, em que circulava entre as prateleiras. Preferia a segunda. Essa liberdade de escolha e descoberta dos autores o cativava. “O leitor deve pegar o livro e ler o que tem interesse. O caminho não precisa ser o mesmo para todos. Machado fez um enorme bem para mim na minha adolescência, porque me ensinou sobre a escrita, sobre o Brasil e fez uma coisa que esperamos que a literatura nos faça, que nos leve para histórias e tempos diferentes. Cada leitor tem o seu caminho para encontrar o seus autores.”
“‘Torto Arado’, por exemplo, é um dos livros do PNLD. Todos os dias sou marcado por algum aluno de escola pública que está lendo o livro, fazendo peça de teatro, alguma atividade relacionada.”
Mercado movimentado
E parece que o leitor tem, sim, traçado um caminho bem pavimentado rumo aos livros. Ainda que as pesquisas apontem que o brasileiro lê pouco, a última Bienal do Livro de São Paulo teve recorde de público, com mais de 700 mil visitantes. Itamar diz que tem essa percepção também nos diversos eventos literários que participa pelo país. O que falta, na sua visão, para que este número se reflita no aumento da quantidade de leitores, é política pública. Existe, mas ainda é muito pouco. “Livro não dá voto”, ele diz.
Tem cidade, destaca, que ainda não possui uma livraria. Mas, se comparado às décadas anteriores, o interesse por livros aumentou, e muito. Só que esse incentivo não pode estar circunscrito ao espaço da escola. “A educação é um movimento de vida que começa quando nascemos e termina quando morremos. A gente vai passar a vida se educando e a leitura é uma das maneiras.”
E para se educar, reduzir as desigualdades, construir um futuro próspero, “fazer as pazes com sua história”, é preciso que os jovens e adultos leiam sobre o Brasil profundo. Itamar diz que o país é um “sítio arqueológico de histórias”, que interessam inclusive internacionalmente, tanto que “Torto Arado” já foi traduzido para 29 idiomas, o último o do Azerbaijão. Ele também chegou, em 2024, à final do Booker Prize, um dos prêmios mais importantes do Reino Unido, primeira vez que um brasileiro chega aos finalistas. “O Brasil é uma potência criativa em todos os sentidos e isso não é demagogia. A história brasileira é muito forte, de violência, de dor, mas também de resiliência, de conquistas e grande coragem. Os autores têm descoberto isso, têm contado essa história e os leitores de todo o mundo têm se interessado por ela.”
Cante sua aldeia
Itamar diz que não poderia escrever sobre outra coisa diferente do que viveu ao longo dos seus 45 anos. E cita Tolstói para justificar a sua escolha: “Ele dizia: se você quer ser universal, cante a sua aldeia. Ser universal é pretensioso demais, mas penso como universal uma literatura que consiga dialogar com os leitores sem fronteira, nos conectando apenas pela experiência humana.” O Brasil, para ele, não é feito dos grandes nomes que batizam ruas, cidades ou que estão nos livros de história. É muito mais, feito por pessoas que carregaram as pedras para erguer este país. “Sobre elas, muito pouco se fala. Acho que neste momento minha literatura tenta se conectar com tudo isso, com aqueles que tiveram suas histórias subestimadas.”
Ele acabou de lançar o livro infantil “Chupim”, em coautoria com a artista plástica Manuela Navas. A obra trata do trabalho no campo colocando lado a lado visão adulta e infantil sobre o mesmo cenário. Tem como protagonista o pássaro preto - o mesmo de em “Torto Arado” - que dá nome à obra ilustrada. E agora o seu foco está em terminar o último livro da trilogia da terra, ainda sem data para ser publicado. Entre um compromisso e outro, tem se dedicado à escrita, não mais “todos os dias como fazia antes”.
A obra por vir é um romance que segue a trajetória dos rios que nascem em “Torto”, correm em “Salvar o Fogo” e deságuam no derradeiro, na Bahia de Todos os Santos. A história ainda fala sobre essa questão tão elementar que é o direito ao território. “Há países em guerra por isso, e o Brasil também vive uma guerra interna por esse direito.” Um caminho trilhado não só pela água dos rios, mas também por suor e lágrimas.
A sua obra, construída tijolo a tijolo, deve alcançar uma altura ainda não estabelecida, mas que continuará a ser discutida nas próximas décadas. A terra já está arada para isso, Itamar.