Nelson Rodrigues, com sua opinião afiada, dizia que ‘toda unanimidade é burra’. Para o jornalista e escritor, o consenso absoluto representava perigo, porque refletia a ausência de reflexão crítica. Talvez, se vivesse hoje, pudesse reavaliar essa impressão. Em um mundo polarizado, onde a norma é opinar o tempo todo contra o lado adversário, conquistar a unanimidade é uma dádiva para poucas - e corajosas - pessoas.
Esse status foi alcançado pela jornalista e consultora de moda Gloria Kalil, que tem 81 anos e participou de um bate-papo com a jornalista Joyce Pascowitch na Casa Vivo, em São Paulo. Ali, além de mostrar por que se tornou referência, falou de assuntos importantes como moda, comunicação e comportamento na atualidade.
Assim que Gloria cruzou a porta da loja-conceito da Vivo, sua relevância ficou evidente. Foi abordada constantemente durante os quase 20 minutos que levou para chegar ao local da conversa. “Você sempre foi linda e elegante, desde criança”, disse uma ex-colega de escola, ecoando os elogios que a consultora também recebe nas redes sociais.
A seguir, confira trechos marcantes desta conversa inspiradora.
FORÇA FEMININA
Foi Gloria quem trouxe a grife Fiorucci para o Brasil, em 1979. Naquele tempo, isso se chamava de concessionária do uso da marca, e o Brasil era fechado para importação. Ela, então, viajava, pegava os moldes e reproduzia aqui. Quando a grife acabou, migrou de área e começou a escrever livros. Na conversa com Joyce, afirmou que ambas fizeram alguns dos primeiros sites de moda e de conversa do mundo e frisou a importância do diálogo entre mulheres.
Mulheres precisam ter uma certa independência econômica se quiserem ter as rédeas nas mãos. Estou falando isso inclusive para as mais jovens. É assim que se faz sua vida, a vida de sua família e a sua velhice serem melhores. Lá em casa, nunca fomos pressionadas a casar e ter filhos. Sempre fomos incentivadas à independência. Era engraçadíssimo, porque eu podia conversar com minha mãe e meu pai de tudo, inclusive drogas. Mas sexo, em compensação, não se falava. Nós nunca fomos incentivadas a namorar.
Nunca olho para trás e vou fazendo sempre coisas que estão se apresentando. Fico de olho: passou o cavalo eu monto.
A Fiorucci acabou porque quebrou na Itália. Nesse momento, muita gente sugeriu que eu pegasse outra marca. Mas eu já havia feito esse trabalho e foi o melhor. Não dá para fazer de novo. Tive várias mudanças de situação: saí do jornalismo, fui para a indústria têxtil, depois confecção, virei consultora, fiz livros, site.
Gosto muito de conversar com mulheres. Ando achando tão mais interessante, os rapazes que me desculpem. Toda a classe revolucionária é mais interessante do que as muito estabelecidas. Nós estamos numa briga danada. Tem homens reclamando: ‘poxa, tenho procurado emprego, mas agora só pode mulher’. E eu digo: ‘Ah, é? (risos)’ Séculos que a gente aguenta injustiça, desde sempre. É uma época meio radical? É. Mas não tem revolução sem queimar sutiã. Essa conversa me interessa sempre muito.
MODA X COMPORTAMENTO
Seu primeiro livro, “Chic: Um Guia Básico de Moda e Estilo”, teve lançamento apresentado pela Ana Maria Braga, no Mube. Depois, ela fez o “Chic Homem”. O “Chic[érrimo]” tinha moda e comportamento, já que as pessoas não querem saber só o que vestem, querem saber o que os espera. A conversa foi se ampliando, principalmente com a internet.
A moda tem vitalidade e predispõe a gente à mudança. Você não se dá conta do quanto a moda mexe com você. Há cinco anos, você não colocaria esta bota que está calçando hoje. A moda impõe novidades para as pessoas e elas não reagem. Isso ajuda a estar em um fluxo de abertura ao novo. É oferta de possibilidades. Estilo é escolha. Dentro daquela gigantesca oferta é possível tirar o que representa a si mesmo.
É importante olhar para fora de si e olhar o outro: onde está, com quem. Não suporto arrogância, é uma das coisas mais desagradáveis que existem. No meu livro “Chic[érrimo] ” tem dicas para homens, mulheres e dicas para celebridades. Eu trato famosos como uma entidade à parte. São pessoas que acham que podem tudo, que as pessoas estão ali para servi-las ou admirá-las. Isso é um absurdo.
Sabe quantos anos tem o telefone celular? Trinta anos. E as pessoas continuam perguntando como usar. O WhatsApp é feito para responder rápido. E isso, profissionalmente, é infernal. Você manda mensagem, envia um projeto e a pessoa nunca mais te responde. Não dá para saber se gostou. Porém, fora do horário, ninguém é obrigado a atender. Aliás, na França é lei: não se pode comunicar com funcionário depois do horário de trabalho.
Estou completamente apaixonada pela autora francesa Annie Ernaux, que, aos 84 anos e ganhadora do Nobel, esteve na Flip e tem uma obra fascinante. Seus livros apresentam uma exposição íntima, mas o foco está nas reflexões que ela traz, criando o que chamam de ficção autobiográfica. Ela escreve sobre sua vida, mas suas observações ressoam com a experiência de todos.
MAS O QUE É SER CHIQUE EM 2024?
Gloria frisa que estamos em um mundo de muita valorização de aparência: é agradável se olhar no espelho e se sentir bem. Mas também é preciso ter um conteúdo correspondente. De 1950 a 1990, ela diz, passamos por diversas fases: elegante, revolucionária, da curtição, experimental. Na década de 90, entra a queda do Muro de Berlim, Mercado Comum Europeu e globalização e aí começa a década da individualidade.
Estamos em um momento de pulverização, com a entrada do smartphone e individualismo virando o centro do mundo. Hoje, é preciso ter um olhar que saia de nosso próprio umbigo.
Ela é ícone de estilo, de saber viver e de estar em sintonia com o mundo em que ela vive. Além disso, tem uma coisa de espírito inovador, que se reinventa sempre. Aprendi muito com ela sobre o que é bom, o necessário, e o que não é.
Joyce Pascowitch, jornalista