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Agenda racial não deve ser invisibilizada em prol da pauta climática, diz diretor do Fundo Baobá

Giovanni Harvey acredita que, embora importante, a predominância dos holofotes nas mudanças climáticas não pode fazer com que discussões étnico-raciais fiquem 'debaixo do tapete'

20 nov 2024 - 08h08
(atualizado às 11h18)

O foco cada vez mais crescente nas ações de mitigação das mudanças climáticas é importante, mas tal movimento não pode significar que a agenda racial seja colocada em um papel secundário no Brasil. O ponto de vista é defendido pelo diretor do Fundo Baobá para Equidade Racial, Giovanni Harvey. Gestor e ativista de temáticas raciais ainda desafiadoras no País, lembradas nesta quarta-feira, 20, Dia da Consciência Negra, ele adverte sobre os riscos de que elas sejam colocadas "debaixo do tapete" sob a justificativa de ter menor importância diante de uma outra emergência global.

"O enfrentamento a padrões de comportamento de consumo que geram essas mudanças climáticas é um compromisso de todas as pessoas e de todos os movimentos, inclusive do Movimento Negro. No entanto, nós não podemos invisibilizar a urgência e a importância do debate racial a partir do argumento de que, neste momento, todas as energias têm de se voltar ao debate sobre as alterações de clima", diz.

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Na avaliação de Harvey, a importância de manter essas pautas em destaque tem relação com o contexto geopolítico, que estaria passando por uma tendência de enfraquecimento das práticas de diversidade que, até então, vinham ganhando força nas empresas. Para o gestor, parte desse movimento se baseia em um momento político mais avesso às ações de equidade racial, dentro e fora das empresas, que se refletiu, mais recentemente, na eleição de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos (EUA). O novo presidente é conhecido por estar mais alinhado a práticas anti-ESG (sigla em inglês para meio ambiente, social e governança).

Diretor-executivo do Fundo Baobá, Giovanni Harvey defende fortalecimento da agenda racial nas empresas
Diretor-executivo do Fundo Baobá, Giovanni Harvey defende fortalecimento da agenda racial nas empresas
Foto: Taba Benedicto/Estadão / Estadão

No Brasil, o trabalho de Harvey tem sido o de manter nas empresas o incentivo ao fomento de estratégias de equidade racial. Em outubro, o Fundo Baobá completou 13 anos, tendo como parceiras divisões de investimentos sociais como Citi Foundation, Instituto Coca-Cola Brasil, Google Org, Instituto Unibanco, B3 Social, entre outras. Segundo dados da organização, já foram investidos quase R$ 22 milhões em iniciativas da agenda, com foco em demandas específicas, como aceleração de carreiras de pessoas negras e saúde dos povos quilombolas.

Para o diretor, é justamente com o fomento a essas comunidades que as empresas poderão aprender como enfrentar a crise climática. "Se nós temos práticas ambientais sustentáveis que podem influenciar a sociedade como todo, essas práticas estão nos povos de comunidades tradicionais e população indígena. Quando investimos em população indígena e quilombola, nós estamos produzindo impacto socioambiental como consequência do fortalecimento de uma comunidade que sempre preservou o equilíbrio do meio ambiente."

Abaixo, os principais trechos da entrevista:

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Especialistas da área falam que houve um ápice de iniciativas corporativas de equidade racial no início dos anos 2020 e uma queda global mais recentemente. O sr. tem observado isso?

Sim. É uma questão central que não diz respeito apenas às empresas privadas. É muito mais profunda, e diz respeito à disputa de narrativas e à reação de segmentos conservadores ao que se considera, por assim dizer, uma criação de privilégios, um esgotamento da necessidade de se ter programas de ação afirmativa, e se reflete também no segmento empresarial. Existe um mito de que existiria um racismo às avessas, de que os negros estariam criando condições de privilégio. Esse pano de fundo gera uma reação, e essa reação é muito forte nos EUA. Inclusive, nós estamos vendo o reflexo dessa reação com a eleição de Donald Trump.

Então, seriam ideais políticos influenciando no setor de negócios?

Exatamente. Dentro desse contexto, da mesma forma que outros setores sociais têm essa percepção de um certo esgotamento, se começa a ter uma retenção. Esse fenômeno é percebido também no Brasil. Mas eu diria - e eu sou um otimista - que no Brasil nós estamos conseguindo contê-lo num certo sentido, pois os argumentos de quem defende essa narrativa não se sustentam. De fato, há pessoas que falam de um retorno de políticas universais, e nós contestamos isso.

O sr. teme que a volta do presidente Trump à Casa Branca possa desacelerar investimentos de impacto?

Eu não vou dizer que isso é uma coisa mecânica, que irá acontecer, porque a economia norte-americana é menos dependente da influência do Estado. Na economia brasileira, embora nós tenhamos uma dependência maior do Estado, nós tivemos um posicionamento da iniciativa privada em relação a esse tema que foi na direção contrária do que o Estado, no governo Bolsonaro, queria implementar. No discurso em que Kamala Harris reconhece sua derrota, ela faz um chamamento aos servidores públicos que resistam a arroubos antidemocráticos de Trump, e pede à sociedade, incluindo a iniciativa privada, que continue comprometida com a democracia. Então, em tese pode vir a acontecer (queda em investimentos), mas não é dado certo que irá acontecer.

Além do início do mandato de Trump nos EUA, 2025 será também o ano da COP-30 no Brasil. Nesse contexto, há especialistas que defendem a inclusão de temáticas de cunho racial nas soluções voltadas para o clima. O sr. é da mesma opinião quanto à necessidade de alinhar as duas discussões?

O enfrentamento a padrões de comportamento de consumo que geram as mudanças climáticas é um compromisso de todas as pessoas e de todos os movimentos, inclusive do Movimento Negro. No entanto, nós não podemos invisibilizar a urgência e a importância do debate racial a partir do argumento de que, neste momento, todas as energias têm de se voltar ao debate sobre as alterações de clima. Penso isso porque tenho 60 anos e comecei como ativista político ainda na juventude, na época da ditadura militar. Naquele momento, se dizia que nós, do Movimento Negro, éramos de direita porque queríamos falar de discriminação racial, quando parte da sociedade queria discutir democracia. Após a democracia, experimentamos momentos de hiperinflação, e setores da sociedade falavam que aquele não era o momento para discussões raciais, pois tinhamos de cuidar da estabilidade da moeda.

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Então, é uma questão histórica...

Não estou dizendo não devemos nos engajar em toda e qualquer iniciativa que possa elevar a consciência das pessoas em relação ao clima. Porém, este problema não foi criado pela população negra e a sua solução, por si só, não elimina as situações diárias de violência praticadas contra negros. Então, eu não comungo do pensamento de que tudo é clima e meio ambiente. É preciso conciliar a agenda enfrentamento das mudanças climáticas com outras agendas tão relevantes quanto. Podemos ter o compromisso de discutir o clima, mas não podemos botar debaixo do tapete o tema da desigualdade étnico-racial. Me posiciono contra esse tipo de discurso, quer seja da crença que a pauta se esgotou, quer seja da crença de que existem outras agendas mais importantes, pois já vi essa história antes.

Nesse sentido, a COP-30 pode ser oportuna ou arriscada para o financiamento de impacto?

Temos de pensar no que estamos estabelecendo como prioridade na hora de impactar. Para o Fundo Baobá, a prioridade é impactar as relações étnico-raciais. Isso não significa dizer que nós não temos compromisso com outros impactos. Por exemplo, em relação à questão da economia verde e à questão climática, quando nós apoiamos comunidades tradicionais quilombolas no reconhecimento do direito à titulação de suas terras, estamos produzindo impacto socioambiental. Se nós temos práticas ambientais sustentáveis que podem influenciar a sociedade como todo, essas práticas estão nos povos de comunidades tradicionais e população indígena. Quando investimos em população indígena e quilombola, nós estamos produzindo impacto socioambiental como consequência do fortalecimento de uma comunidade que sempre preservou o equilíbrio do meio ambiente. Então, não é uma coisa ou outra. É continuar a investir em comunidades tradicionais.

O senhor traz uma perspectiva de que os povos tradicionais podem ensinar práticas de preservação. Falta, então, esse entendimento das empresas de que as soluções já estão postas?

Exatamente. É que nós estamos presos a um padrão de consumo e um estilo de vida dos quais não queremos desapegar: consumo de eletricidade, consumo de instrumentos que dependem de combustível fóssil... Nós estamos reféns desse padrão de consumo e é isso que delimita a nossa capacidade de enxergar. Infelizmente, não existe forma de buscar um jeito mais sustentável de viver, se nós não dermos um freio nesses padrões.

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