Tema de embate interno no governo, o uso de créditos extraordinários - não previstos no Orçamento - à margem dos limites legais foi adotado em larga escala por antecessores do presidente Jair Bolsonaro e teve aval do Congresso. Agora, integrantes do Executivo e parlamentares discordam sobre o aumento de gastos para realização de obras de interesse do Planalto.
A estratégia classificada pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), como inconstitucional teve respaldo nos últimos anos em despesas totalmente previsíveis, como a limpeza do chão onde trabalham os deputados federais, a realização de obras de infraestrutura e até o pagamento de auxílio-moradia para servidores públicos.
Como o Estadão/Broadcast revelou, o governo prepara uma medida provisória abrindo um crédito extraordinário de R$ 5 bilhões para obras de infraestrutura, o que deixaria a despesa fora do teto de gastos. Uma MP passa a valer assim que é assinada pelo presidente da República, mas tem 120 dias para ser confirmada ou rejeitada pelo Congresso.
Desde o início do governo, Bolsonaro assinou 36 medidas provisórias para abertura de crédito extraordinário - todas elas elencadas como gastos imprevisíveis, como o pagamento do auxílio emergencial de R$ 600 a trabalhadores informais. Agora, porém, o governo quer ir além e adotar o instrumento para realizar obras em locais escolhidos por ministros e parlamentares.
Na semana passada, Maia disse ao Estadão que a estratégia é inconstitucional. Se a ampliação dos gastos em infraestrutura na pandemia for uma decisão de governo, de acordo com o parlamentar, é preciso mandar um projeto de lei, não uma MP, para refazer a distribuição dos recursos dentro do próprio Orçamento. Ou seja, para ampliar os gastos com obras, será preciso cortar de outras áreas.
A Constituição só permite crédito extraordinário para despesas urgentes e imprevisíveis, ou seja, gastos emergenciais que o Executivo não podia ter previsto antes. Somente em situações como guerra, comoção ou calamidade pública é que esse espaço extra no orçamento é autorizado.
O crédito extraordinário fica fora do teto de gastos, regra que proíbe o governo de gastar acima da inflação do ano anterior desde 2016. É por essa brecha que o governo articula investimentos com a justificativa de combater os efeitos econômicos da pandemia de covid-19.
Obras, limpeza e até auxílio-moradia
A abertura de crédito extraordinário para bancar despesas de interesse do governo, articulada agora pelo presidente Jair Bolsonaro, também foi usada por antecessores, mesmo quando os gastos não eram para despesas imprevisíveis, como manda a Constituição.
Em novembro de 2016, o presidente Michel Temer assinou uma medida provisória abrindo crédito extra para bancar custeios administrativos na Câmara dos Deputados, como informática, limpeza e vigilância. Na mesma medida, autorizou o dinheiro extraordinário para pagar a conta de luz do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e os aluguéis da Justiça Militar da União.
A Consultoria de Orçamento da Câmara alertou que a medida de Temer não atendia aos critérios da Constituição exigidos para crédito extraordinário. O Legislativo, porém, deixou a MP passar sem votar, permitindo ao governo executar todas as despesas articuladas pelo governo.
Em 2008, o Congresso aprovou uma MP do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva autorizando o governo a gastar R$ 1,7 bilhão com obras em rodovias, saneamento e energia elétrica. Na época, técnicos do Senado colocaram dúvidas sobre a constitucionalidade da medida, o que não foi suficiente para barrar a despesa. Em uma ação protocolada pelo PSDB, oposição ao governo do PT, o Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu os efeitos da MP de Lula, mas o governo já havia gastado quando a decisão foi dada.
Também houve uma medida abrindo um crédito extraordinário para o pagamento de auxílio-moradia a agentes públicos em 2016, ainda durante o mandato da ex-presidente Dilma Rousseff. A medida foi vista por especialistas como totalmente incomum. Prevendo outras despesas, a MP deu aval para um gasto de R$ 419,5 milhões. A Consultoria da Câmara também contestou a medida, mas o Legislativo deixou passar.
A estratégia de Bolsonaro, adotando a mesma manobra de antecessores, é contestada por técnicos do Congresso. "Depois do impeachment de Dilma, o governo tem certos receios de usar crédito extra, o orçamento não é como antigamente. Existe a brecha, mas não seria recomendado para fazer investimentos", afirmou o diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado, Felipe Salto.
Na avaliação do economista, o uso do crédito para investimentos, mesmo que seja extraordinário, abriria margem para gastos permanentes com a necessidade de manter as estruturas funcionando após essas obras. "Pode-se falar que o investimento é necessário porque a crise não era prevista, sempre dá para justificar, mas esse seria um caminho ruim para o pós-crise. Burla ao teto de gastos não é desejável."
Procurado pela reportagem, o Ministério da Economia respondeu apenas que a Secretaria de Orçamento Federal, vinculada à pasta, não recebeu até o momento a demanda de recursos questionada - ou seja, o crédito para as obras. Os ministérios do Desenvolvimento Regional e da Infraestrutura, que pedem os investimentos, afirmaram que cabe à Economia responder.