A Intuitivo, que ganhou a competição de startups do Web Summit Lisboa 2024, foi um ponto fora da curva durante os quatro dias de evento. A empresa, que auxilia professores a otimizarem métodos de avaliação para focarem seu saber na prática de ensino, quase não falou em inteligência artificial, um assunto onipresente na conferência.
A bem da verdade, é um tema protagonista de qualquer evento sobre tecnologia hoje.
E ainda que permeie seminários, feiras e conversas, que se embrenhe em nossos trabalhos, notebooks e celulares, em câmeras de segurança, geladeiras, carros e nos comerciais que vendem esses carros, a IA não é a tecnologia de maior destaque da Intuitivo. Não por que a startup da cidade do Porto, que já conta com mais de 40 mil professores entre seus usuários, não a utilize. Mas simplesmente ela abstraiu a necessidade de debater os filigranas do IA em sua ferramenta para focar naquilo em que ela é realmente útil: ajudar professores.
Exceto por raros casos assim, a IA segue sendo o conteúdo essencial. Sua relevância como política pública vai assumindo os contornos de necessidades básicas como água, saneamento, energia e internet.
Neste sentido, o Web Summit cumpriu um valioso papel em elevar o debate. Fosse por meio das últimas inovações em modelos de linguagem em grande escala, ou LLM (Large Language Models), fosse em falas importantes de especialistas como Pamela San Martín (ex-integrante do Instituto Nacional Eleitoral do México e atual parte do Conselho de Supervisão da Meta) e Gabriele Mazzini (pesquisador do MIT Media Lab e autor do IA Act da Comissão Europeia).
Na comparação com o ano anterior, o evento cresceu em números de participantes, de startups, de palestrantes. Havia dúvidas sobre a reinvenção do evento após o boicote das big techs, em resposta ao comentário de Paddy Cosgrave, cofundador e CEO do Web Summit, a respeito da guerra na Palestina no ano passado, condenando os ataques à Faixa de Gaza. Mas a conferência reforçou sua importância, com outras empresas assumindo os patrocínios, grandes estandes de países atraindo as atenções (destaque para Qatar, Brasil e Alemanha) e, nos palcos, chefes de Estado, creators famosos, artistas como Pharrell Williams e Imogen Heap e ex-atletas como Carmelo Anthony, Roberto Carlos e Rúben Dias.
Regulação de IA
O conjunto de leis sobre inteligência artificial para a União Europeia foi um tema debatido em diversos painéis, por ser uma das primeiras regulações formatadas sobre o assunto. O chamado IA Act já foi aprovado em assembleia e possui um cronograma de aplicações definido, que deve se desenrolar pelos próximos dois anos.
"Um dos nossos desafios era debater a aplicação da tecnologia enquanto víamos o desenvolvimento de IA generativa e modelos de linguagem. E desafios em como analisar os riscos sem frustrar os potenciais de inovação", falou Gabriele Mazzini, no debate "Nos bastidores do AI Act da União Europeia", entrevistado por Jeremy Kahn, editor de IA da Fortune. "Mas, para que um processo não interrompesse o outro, entendemos que LLM era algo de interesse regional, que já entrava no debate, enquanto Gen AI teríamos de elaborar com maior cuidado, num fórum internacional."
Aguardar os tempos de cada proposta, inclusive no que diz respeito à adaptação de diferentes empresas, mercados e países, foi dos poucos pontos em comum com a regulamentação para proteção de dados, a GDPR. Outra semelhança que Gabriele aponta é a influência que o AI Act também terá sobre regulamentações em outras partes do globo. "Já vem sendo aguardada como uma referência para replicação internacional, e tenho falado muito sobre nossa experiência mudo afora."
IA e marketing
A aplicação construtiva desse tipo de tecnologia está no cerne da Code and Theory, cujo CEO Michael Treff participou do painel "Dominando o marketing na era de IA". Para o executivo da agência, parte do grupo Stagwell Global, sua aplicação deve responder primeiro à motivação de seu uso. Encontrando bases sólidas, o bom senso guiará as respostas seguintes. "É preciso definir o porquê, pois isso direcionará os objetivos, os KPIs e as melhores ferramentas a serem usadas", disse Treff, em conversa com Don McGuire, CMO da Qualcomm.
Apesar de seus desafios éticos e regulamentais, a indústria da comunicação não deve menosprezar sua importância. Segundo pesquisa da McKinsey apresentada durante o painel "Como a IA está impactando o processo criativo na propaganda", o uso de inteligência artificial generativa em marketing cresceu 125% no último ano, com um possível impacto de um trilhão de dólares neste ciclo. Dentro dessa perspectiva, "quais são os aspectos transformadores de como podemos usar Gen AI no nosso negócio?", questionou Jacky Wright, chief of technlogy and product officer da McKinsey. Para ela, o limite ainda se verifica em pontos como "personalização, engajamento do consumidor, consolidação de um projeto de criação de conteúdo e analytics em tempo real para entender o sucesso da campanha até o gerenciamento do ciclo de vida dessa comunicação."
A PepsiCo, que foi representada por Kate Brady, global head of creative & content transformation, aplica diferentes usos de IA em sua estrutura de marketing, tendo em vista produtividade e otimização de recursos. Mas, em acordo com o que disse a executiva da McKinsey, Brady destacou que não abrem mão de aspectos humanos em sua jornada comunicativa. "Temos múltiplas marcas e é preciso que a voz de cada uma, que o tom de cada uma tenha uma consistência através do nosso portifólio. E ter cuidado com esse engajamento com a audiência, de modo que não machuque nossa reputação, são coisas as quais precisamos manter o controle."
O Web Summit se despediu de Lisboa com boas perspectivas para o próximo ano, inclusive para os eventos internacionais — o primeiro é no Qatar, em fevereiro, seguido por Rio de Janeiro, em abril. A qualidade da curadoria de conteúdo permaneceu, ainda que a feira e as oportunidades diversas de networking, conexões e negócios tenham sido preponderantes na reunião de mais de 71 mil pessoas no Parque das Nações.