Considerada estratégica para a equipe política e econômica do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a PEC da Transição deve começar a ser votada na Câmara dos Deputados nesta terça-feira (20/12).
Responsável por garantir bilhões de reais em orçamento para o novo governo, a PEC da Transição também está sendo vista como uma espécie de "teste" para o novo governo Lula: em jogo estão recursos para o Auxílio Brasil, programas considerados prioritários pelo novo governo e a capacidade da nova gestão conseguir aprovar suas pautas no Congresso Nacional.
A proposta de emenda constitucional (PEC) que ganhou o apelido de PEC da Transição, é uma medida desenhada por aliados de Lula que prevê uma ampliação do teto de gastos prmitidos ao governo no valor de até R$ 168,9 bilhões. O texto já foi aprovado em dois turnos no Senado e deveria ter sido colocado em pauta na Câmara na semana passada.
O que é a PEC da Transição e o que ela prevê?
A medida ganhou o apelido de "PEC da Transição" porque vem sendo desenhada por aliados do presidente eleito Lula durante a transição entre o governo do presidente Jair Bolsonaro e a nova administração que tomará posse no dia 1º de Janeiro de 2023. Estão previstos:
- Ampliação do teto de gastos em R$ 168,9 bilhões. Isso significa que o governo pode gastar até R$ 168,9 bilhões por dois anos (2023 e 2024) acima do limite atual.
- Parte desse valor será usada para o pagamento do Auxílio Brasil de R$ 600 a partir de janeiro de 2023 e de um abono de R$ 150 para cada família com crianças até seis anos de idade.
- O governo poderá gastar até R$ 23 bilhões referentes a arrecadações extraordinárias em investimentos.
- O governo poderá usar a margem de R$ 168,9 bilhões aberta no orçamento por conta da ampliação do teto em outros programas. Segundo petistas, os ministérios da Educação e da Saúde receberão parte desses recursos.
A PEC da Transição é considerada importante para o novo governo Lula porque permite que ele cumpra a promessa de manter o valor do Auxílio Brasil sem violar a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e a emenda constitucional que criou o teto de gastos, o que poderia gerar eventuais pedidos de impeachment.
Além disso, com a ampliação do teto de gastos para o pagamento do auxílio, o governo poderá usar o espaço que será aberto no orçamento para recompor as verbas de outros programas, como o das farmácias populares, além de aumentar as verbas para a merenda escolar.
Para a PEC entrar em vigor, ela precisa ser aprovada em dois turnos no Senado e na Câmara dos Deputados. Depois disso, ela é promulgada e não precisa passar por sanção presidencial.
No Senado, ela foi votada em dois dias graças, em parte, à atuação do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), e do relator da medida na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, Alexandre Silveira (PSD-MG).
Prestígio político em xeque
Apesar de ter sido aprovada em apenas dois dias no Senado, a PEC da Transição "travou" ao chegar na Câmara dos Deputados, presidida por Arthur Lira (PP-AL), onde está parada há mais de uma semana fazendo com que analistas colocassem em xeque a fama de negociador habilidoso frequentemente atribuída a Lula.
Entre os fatores apontados como responsáveis pela demora na votação da PEC estariam as tentativas de parlamentares para manter o chamado "orçamento secreto" intacto e a suposta pressão feita por Lira e outros líderes do Centrão por cargos no novo governo Lula.
Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil na semana passada afirmaram que Lira e outros líderes parlamentares estariam usando a PEC da Transição como forma de pressionar o novo governo e os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) a não mexerem no "orçamento secreto".
"Orçamento secreto" é o apelido dado às emendas de relator-geral do orçamento que permitiam a destinação de recursos da União sem a completa transparência sobre quem eram os parlamentares responsáveis pelas indicações. O mecanismo era tido como uma das fontes de influência de Lira sobre os parlamentares.
Na segunda-feira, porém, o STF concedeu duas decisões que, na avaliação de especialistas, esvaziou, em parte, o poder de Lira em relação à tramitação da PEC da Transição. Na primeira, o ministro Gilmar Mendes permitiu que os gastos com o Auxílio Brasil possam ser feitos fora do teto de gastos. Essa possibilidade é vista como o "coração" da PEC.
Em outra decisão, o STF julgou o "orçamento secreto" inconstitucional, acabando, pelo menos em tese, com o mecanismo apontado como uma das principais fontes de influência de Lira junto aos deputados.
Na teoria, as duas decisões fazem com que Lula dependa menos do poder de Lira para fazer avançar a PEC da Transição.
Mas especialistas ouvidos pela BBC News Brasil afirmam que as dificuldades enfrentadas por Lula para fazer a medida avançar podem ser vistas como uma amostra do que ele poderá enfrentar nos próximos quatro anos: uma espécie de "teste" de sua capacidade de articulação política.
Para a professora de Ciência Política da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) Denilde Holzhacker, o cenário imposto por Lira durante a tramitação da PEC da Transição indica que as relações entre Executivo e Legislativo, a partir de 2023, podem ser ainda mais tensas e deverão exigir ainda mais habilidade de Lula.
O índice de renovação de deputados na Câmara dos Deputados foi de 39%. Dos 513 eleitos, 219 serão "novatos".
O PL, partido do presidente Bolsonaro, foi o que obteve a maior bancada, com 99 parlamentares. No Senado, o PL também fez a maior bancada: 14 dos 81 senadores. O PT obteve apenas nove assentos.
"Em 2023, vai ter uma renovação grande na Câmara dos Deputados. A tendência é que haja um núcleo de oposição ao governo Lula, bolsonarista, maior do que o que temos hoje. Isso deverá aumentar a resistência no Congresso às pautas do novo governo", diz a professora.
"Esse núcleo de oposição pode criar muitos entraves para o novo governo", complementa Denilde.
Denilde trabalha com a possibilidade de que Lira seja reeleito para a Presidência da Câmara.
Além do apoio de parte da bancada bolsonarista, Lira conseguiu o apoio formal do PT para a sua reeleição. O apoio foi costurado por Lula e é visto como uma forma de evitar atritos com o chefe da Casa legislativa.
O professor de Ciência Política da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Marco Antônio Teixeira, concorda com a colega.
"Se não houver uma calibragem bem feita nessa sintonia entre o governo e o Congresso, a situação que já está ruim agora, pode piorar no futuro. Lula é conhecido como um bom negociador, mas o cenário é diferente, agora. É outra conjuntura em comparação aos seus dois primeiros mandatos", afirmou o professor.
Segundo o professor, essa sintonia passará pela negociação de cargos e espaço no orçamento.
"Neste momento, não há outras formas de se relacionar com o Congresso e suas lideranças", afirma o professor.
O professor de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Leonardo Avritzer, por outro lado, diz que ainda é cedo para prever como será a relação entre o Executivo e o Legislativo e se a força política de Lula será afetada por conta da PEC da Transição.
"É preciso aguardar para saber como essa nova bancada vai se comportar. É possível que a centro-direita se alie ao governo para se contrapor ao avanço do bolsonarismo. Se isso ocorrer, o cenário será de maior estabilidade", disse.
Ele diz, ainda, que é preciso considerar uma outra variável nessa equação: a atuação do Judiciário.
"Também precisamos ver como será a atuação do Judiciário ao longo dos próximos anos. Hoje, por exemplo, a posição do STF foi benéfica a Lula porque acabou com o orçamento-secreto e permitiu que o Auxílio Brasil ficasse fora do teto de gastos. É preciso saber se ele será esse viabilizador da governabilidade ao longo de quatro anos", disse o professor.
Avritzer afirma que, a julgar pela atuação de Lira até agora, tudo leva a crer que as negociações do governo com o Parlamento, onde o presidente da Câmara exerce grande influência, se daria de forma individualizada.
"Lira faz suas articulações a cada nova votação. Não é possível esperar um alinhamento ou mesmo um desalinhamento dele com o governo. Tudo leva a crer que essa será uma relação a ser negociada a cada pauta", diz o professor.
Para o ex-líder do PT na Câmara e deputado federal Carlos Zarattini (SP), o futuro das relações entre o governo e o Legislativo ainda não está definido e a tramitação da PEC da Transição não pode ser vista como um modelo de como as negociações se darão.
"Isso vai depender, em parte, de como o MDB, PSD e outros partidos do Centrão vão se comportar. O PL tem uma bancada grande, mas é dividido. Uma parte dele é de deputados bolsonaristas, mas a outra é do velho PL, que é composto por pessoas que topam conversar e negociar politicamente", disse Zarattini.
O parlamentar afirmou que o novo governo precisa investir em formar uma bancada sólida e não depender do Supremo para resolver situações como o pagamento do Auxílio Brasil.
"O que a gente precisa é de uma bancada grande que dê sustentação ao governo. Vai haver muitas outras votações nos próximos anos. Não podemos ficar dependentes do Judiciário", disse.
- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63883390