A recente onda de calor no verão argentino, que levou o país a registrar as maiores temperaturas da história, não só atingiu de maneira significativa a economia local, mas também vem impactando o vizinho Brasil, seu principal parceiro comercial há 20 anos.
A seca gerou perdas "dramáticas" na agricultura, enquanto incêndios danificaram a infraestrutura nacional, o que chegou a deixar metade da Argentina sem energia.
"As perspectivas de produção agrícola para a safra 2022/23 são dramáticas, e as estimativas podem ser revisadas para baixo nas próximas semanas", diz Santiago Manoukian, chefe de pesquisa da consultoria Ecolatina, à BBC News Brasil.
Segundo ele, os três principais cultivos da Argentina — soja, trigo e milho — acumulam perdas de 40% em relação à última safra, com um prejuízo de cerca de US$ 20 bilhões na mesma comparação.
"A queda abrupta da safra de trigo, em cerca de 43%, está afetando seriamente os volumes de exportação desse cereal para o Brasil. Em janeiro, as exportações de trigo da Argentina para o País caíram 41% em relação ao mesmo período de 2022", afirma Manoukian.
O Brasil é o maior comprador de trigo argentino.
Em seu índice mais recente para os preços globais dos alimentos, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação (FAO) destacou a "piora das condições na Argentina" como um dos elementos que impulsionaram os preços dos cereais em fevereiro.
No entanto, o presidente-executivo da Associação Brasileira do Trigo (Abitrigo), Rubens Barbosa, pondera os impactos dos preços ao consumidor final, avaliando que não deve haver aumento significativo nos preços da farinha.
Segundo ele, importadores brasileiros conseguiram se mobilizar para obter a matéria-prima por outras fontes, com destaque para a Rússia.
"O maior risco do conflito (com a Ucrânia) no momento foi superado. Não há restrições à produção russa, que está alcançando níveis recordes", assinala.
Impacto na indústria
Para além da agricultura, a indústria argentina sofre impactos da recente crise.
Além de maiores dificuldades na produção, o menor ingresso de divisas estrangeiras reduziu a capacidade de importação local.
Manoukian estima em até 40% a redução na atividade do setor e avalia "com preocupação" a relação com o Brasil, uma vez que os dois países possuem uma série de cadeias produtivas integradas.
Cerca de 40% das exportações de manufaturas de origem industrial da Argentina na última década tiveram o Brasil como destino, segundo a Ecolatina. Grande parte integra a indústria automotiva brasileira.
Mudanças climáticas
Christopher Callaha, professor do Departamento de Geografia da Universidade de Dartmouth, na Inglaterra, aponta em um artigo que a América Latina é uma das regiões potencialmente mais afetadas economicamente por ondas de calor.
Em entrevista à BBC News Brasil, ele avalia que os fenômenos devem ser mais frequentes e que estão ligados às mudanças climáticas provocadas pelos humanos.
"O aumento das temperaturas globais tornou muito mais provável que os recordes de calor sejam quebrados e que as ondas de calor sejam mais severas do que costumavam ser. Acredito que a recente seca e os danos à infraestrutura sejam devidos, pelo menos em parte, às emissões humanas de gases de efeito estufa", afirma.
"Locais de renda mais alta geralmente são mais adequados para resistir a eventos climáticos extremos. Rendas mais altas estão associadas a uma menor dependência dos setores agrícolas vulneráveis da economia. Como resultado, espero que os mercados emergentes serão menos resilientes a esses eventos extremos."
Analisando as últimas décadas, o estudo de Callaha constatou que as perdas com as ondas de calor chegam a 6,7% do Produto Interno Bruto (PIB) per capita por ano para regiões no decil de renda inferior, mas apenas 1,5% para regiões no decil de renda superior. O PIB é um indicador que mede a soma de bens e serviços produzidos por um país.
"Espero que eventos climáticos extremos terão grandes efeitos sobre os principais produtores de alimentos. Sabe-se que as ondas de calor e as secas prejudicam as colheitas, e as perdas causadas pelo clima podem aumentar os preços dos alimentos em todo o mundo", diz Callaha, que projeta efeitos econômicos negativos em outros países sul-americanos das ondas de calor atuais e futuras na Argentina.
Outra pesquisa, da Atribuição do Clima Mundial (WWA, na sigla em inglês), publicada no ano passado, revelou que as mudanças climáticas aumentaram em 60 vezes a probabilidade de temperaturas extremas na região, em dezembro de 2022.
Foram analisados os níveis de chuva nos últimos três meses de 2022 em uma área que inclui grandes partes da Argentina, todo o Uruguai e uma pequena região no sul do Brasil.