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Como ouro virou 'maldição' para o Sudão e alimentou confrontos com dezenas de mortos

Em 2012, a nação africana viveu uma febre do ouro que gerou violência e graves alterações no meio ambiente, e que anos depois tem influência nos recentes confrontos que estão ocorrendo no país.

18 abr 2023 - 11h20
(atualizado às 11h44)
Dois homens em joalheria no Sudão
Dois homens em joalheria no Sudão
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

O Sudão, um extenso país localizado no leste da África, passou por um fim de semana turbulento, que deixou mais de 100 mortos e cerca de 1,1 mil feridos.

Segundo diferentes organizações internacionais, as mortes ocorreram como resultado de confrontos entre membros do exército e das milícias paramilitares conhecidas como Forças de Apoio Rápido (RSF, na sigla em inglês).

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Até agora, a maioria dos ataques entre ambos os lados ocorreu na capital do país, Cartum.

Mas esse confronto é resultado de uma longa cadeia de eventos, tensões, crises e lutas políticas que não permitiram ao país ter estabilidade desde a queda do regime de Omar al Bashir em abril de 2019.

Entre as razões para a eclosão da violência, está a falta de diálogo entre os dois principais líderes militares que ficaram à frente do país para conduzir a nação rumo a uma democracia civil: Mohamed Hamdan Dagalo, chefe da RSF e mais conhecido como Hemedti, e Abdel Fattah.al Burhan, chefe do exército e presidente do país.

Mas entre todos os fatores que contribuem para a tensão interna no Sudão, há um elemento-chave: o país africano possui uma das maiores reservas de ouro do continente.

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Segundo o governo, o Sudão registrou cerca de US$ 2,5 bilhões em exportações só em 2022, o que corresponde à venda de 41,8 toneladas de ouro.

Em 2022, as vendas de ouro do o Sudão somaram US$ 2,5 bilhões
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

A maior parte das minas mais lucrativas do país é controlada por Hemedti e as milícias do RSF, que financiam suas operações com a venda do metal precioso não só ao governo de Cartum, como também a outros compradores de países vizinhos.

"As minas de ouro se tornaram a principal fonte de renda para um país com muitas dificuldades econômicas. E, nesses momentos de tensão, elas se tornam um objetivo estratégico", explica Shewit Woldemichael, especialista em Sudão do Crisis Group, à BBC News Mundo , serviço de notícias em espanhol da BBC.

"E tem sido sobretudo uma das fontes de financiamento da RSF, e que o exército vê com certa desconfiança", acrescenta.

Ao mesmo tempo, a extração desenfreada causou uma série de efeitos devastadores nas áreas ao redor das minas, com um número muito alto de pessoas mortas não só pelo colapso de minas, como também doentes em decorrência do mercúrio e do arsênio, usados na extração do metal.

Mas como o ouro se tornou esse elemento estratégico nos confrontos que deixaram dezenas de mortos no Sudão nos últimos dias?

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Sudão e a 'maldição do ouro'

Após a independência dos territórios hoje conhecidos como Sudão do domínio britânico, em 1956, teve início um difícil processo de reorganização, repleto de altos e baixos.

Nessa jornada, o país encontrou na produção de petróleo sua principal forma de financiamento.

No entanto, em meados da década de 1980, começou um processo de independência no sul do país, concluído em 2011, após um conflito acirrado, que culminou com a criação da República do Sudão do Sul.

Com isso, o Sudão perdeu dois terços do dinheiro proveniente das exportações de petróleo.

A diminuição dos recursos intensificou as tensões internas entre diversas etnias, milícias e grupos armados que convivem no país.

Mohamed Hamdan Dagalo é o chefe das Forças de Apoio Rápido do Sudão
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Em 2012, foi revelado que uma área chamada Jebel Amir, no norte do país, poderia conter reservas de ouro suficientes para aliviar a difícil situação econômica do país.

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"Isso foi claramente visto como uma dádiva de Deus, considerando o que eles haviam perdido com o Sudão do Sul", explica à BBC Alex de Waal, analista especialista em Sudão da Universidade Tufts, nos EUA.

"Mas logo se tornou uma maldição porque o que fez foi intensificar a luta pelo controle do território entre vários grupos e deu origem a uma febre do ouro descontrolada", acrescenta.

De acordo com registros locais e o próprio De Waal, dezenas de milhares de jovens foram para aquela região do país para tentar a sorte em minas rasas com equipamentos rudimentares.

Alguns encontraram ouro e ficaram ricos, outros foram soterrados em desmoronamentos ou ficaram doentes em decorrência do envenenamento por mercúrio e arsênio usados para processar as pepitas do metal.

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Em 2021, 31 pessoas morreram após o colapso de uma mina de ouro abandonada na província de Kordofan Ocidental. E, recentemente, no dia 31 de março, outras 14 pessoas morreram quando outra mina desabou no norte do país.

Segundo a Universidade de Ciência e Tecnologia do Sudão, em análises realizadas em bacias hidrográficas próximas a áreas de mineração em 2020, foram encontrados níveis de concentração de mercúrio de 2004 partes por milhão (ppm) e de arsênio de 14,23 ppm.

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), os níveis permitidos são de 1 ppm para mercúrio e 10 ppm para arsênio na água.

"O uso de cianeto e mercúrio definitivamente levará a um desastre ambiental no país", afirmou El Jeili Hamouda Saleh, professor de direito ambiental da Universidade Bahri, em Cartum, a uma rádio local.

"Há mais de 40 mil locais de extração de ouro no país. Cerca de 60 empresas de processamento de ouro operam em 13 estados do país, 15 delas em Kordofan do Sul. Isso não vai acabar bem, porque elas não cumprem os requisitos ambientais", observou.

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Mas não foi a única coisa que aconteceu. Um líder tribal conhecido como Musa Halil, leal a Al Bashir, assumiu o controle do território após uma limpeza étnica que custou a vida de mais de 800 pessoas que residiam na área.

Halil começou a explorar o ouro e vendê-lo, não apenas para o governo de Cartum, mas também para outros compradores.

A precariedade da mineração no Sudão é uma cena habitual no norte do país
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

No entanto, em 2017 — depois que Halil, acusado de crimes contra a humanidade, foi entregue às autoridades internacionais —, Hemedti, líder da RSF e que havia se armado para defender Al Bashir de qualquer ameaça militar, assumiu o controle da exploração das minas.

Naquela época, as receitas da venda de ouro representavam cerca de 40% das exportações do país. Literalmente, uma mina de ouro.

"Esse ouro fez de Hemedti o principal comerciante do metal no país e, com isso, ele também obteve o controle da fronteira com o Chade e a Líbia", diz De Waal.

Um caminho para a democracia

O fato é que, após a queda de Omar al Bashir em 2019 devido a um golpe de Estado dos militares, o país ficou nas mãos dos dois homens que controlavam os grupos armados: Hemedti e Al Burhan.

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"Graças, entre outros fatores, ao controle da produção de ouro, com 70 mil homens e mais de 10 mil caminhonetes armadas, a RSF se tornou a infantaria de fato do Sudão, a única força capaz de controlar as ruas da capital, Cartum, e outras cidades", conta De Waal.

Em 2021, os dois líderes se comprometeram — em uma tímida aliança — a iniciar um processo que culminaria em um governo civil e democrático para o Sudão.

"Nessa aliança, ratificada em dezembro passado, ficou claro que a produção de ouro seria entregue ao governo civil eleito. Mas, evidentemente, o poder crescente de Hemedti fez com que as pessoas ao redor de Al Burhan pedissem para controlar as ações da RSF", explica Woldemichael.

As forças de Hemedti se encontram perto da capital do Sudão, Cartum
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Ele esclarece, no entanto, que há muitas forças que também querem participar do controle do ouro no norte do Sudão.

"Por essa razão, o exército controlado por Al Burham tentou usar as negociações da reforma do setor de segurança [como parte de negociações mais amplas para a transição política] para controlar a RSF, sob condições que Hemedti não aceitaria", explica.

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Esse foi um dos vários fatores responsáveis pela escalada da tensão até os violentos confrontos do fim de semana. Mas ainda há outros fatores que podem acabar desestabilizando o país.

"À medida que os combates na Líbia se acalmam, espera-se que muito mais combatentes de Darfur que estavam lutando lá acabem regressando, o que aumentará a luta pelos recursos, incluindo as minas de ouro", acrescenta.

Para os analistas, a verdade é que a paz vai depender sobretudo dos efeitos da condenação internacional ao uso da violência no país.

"Não é certo que nenhum dos grupos obtenha vitória total, então, à medida que infelizmente aumentem as baixas de ambos os lados e, portanto, aumente a condenação interna e internacional, acho que eles vão decidir negociar", conclui.

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