Quando Heloísa Andrade começou usar o TikTok, o que chamava a atenção dela eram vídeos de influenciadoras que davam dicas de "produtinhos". Parecia perfeito, afinal, não precisava sair de casa para testar, pois alguém já tinha testado por ela.
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A cada shampoo maravilhoso que via no feed, uma nova parcela no cartão. A cada base-que-deixa-a-pele-incrível, um clique no carrinho virtual. Heloísa só percebeu que as coisas estavam saindo do controle quando recebeu uma visita da mãe, que se assustou com tanto acúmulo: "Você é uma pessoa só, como que usa tudo isso?".
Foi quando caiu em si do consumo exagerado e dos problemas financeiros que teve por comprar tantos cosméticos, confiando na indicação de pessoas que nunca tinha visto antes, mas que de alguma forma pareciam saber o que estavam falando. Para tentar dar um sentido àquele amontoado de produtos que tinha em casa, ela teve uma ideia: passar a produzir conteúdo dando dicas de itens de beleza com tudo que já tinha comprado.
Se tivesse começado a usar a rede social agora, a estudante de 21 anos teria poupado muita grana em produtos de beleza. Isso porque acumular cosméticos saiu da trend e virou cafona. A nova tendência do TikTok é estimular a redução do consumo. O assunto saiu até no New York Times com o chamado undercosumption core, ou "uma vida de menos consumo", em tradução livre.
Para manter o controle nas compras, influenciadoras passaram a estimular o Project Pan. O desafio nada mais é do que separar alguns produtos e usá-los até o final, antes de comprar qualquer cosmético novo. De primeira, parece absurda a ideia de criar um "projeto" para fazer o que a maioria dos consumidores médios fazem, mas a verdade é que a ideia se tornou um viral.
Comprar online dá 'onda'
Antes de estar "fora de moda", Heloísa passou a querer ver as prateleiras e a penteadeira cheias de produtos quando começou a usar o TikTok com frequência. Por lá, um banho normal não é mais aquele com um sabonete, um shampoo e um condicionador. Para se sentir bem durante todo o dia, influenciadoras te ensinam a fazer "10 passos para se manter cheirosa". Só aí já vão dez produtos, muito dinheiro gasto com cosméticos e incontáveis parcelas para resolver depois.
"Eu nunca fui uma pessoa de ter muitos produtos. Só comecei a ter essa paixão por cuidar de mim com essa história das blogueiras. Me tornei do tipo que via uma influenciadora indicando e corria para comprar na hora. Comprava muita coisa e não dava conta de usar", relembra Heloísa.
Para ela, o consumismo é um vício tanto quanto o uso desenfreado de cigarro ou álcool. Para a onda 'bater', a estudante conta que as compras virtuais eram sempre a opção. "É aquela sensação de comprar uma coisa e ficar esperando aquilo chegar. Tem uma ansiedade", explica.
A grana que ia para os comércios online faltava em casa. "Eu não tinha o dinheiro para ir ao shopping às vezes. Pensava: 'Nossa, eu queria ir no shopping hoje comer alguma coisa, passear' e eu não tinha, porque eu tinha comprado dez bases de maquiagem", diz.
Para o contador e consultor financeiro Alison Santana, esse é um efeito claro das redes sociais.
"Temos por lá os influenciadores fazendo conteúdos promovidos, sendo patrocinados, aqueles anúncios direcionados para o seu perfil, aquelas tendências também que são bem virais. E isso faz com que nós, usuários, estejamos frequentemente expostos a novos produtos, estilos de vida que muitas vezes ultrapassa a nossa capacidade financeira", argumenta.
"As redes sociais são ambientes de constante novidade e pressão social e podem levar a compras impossíveis e excessivas. Isso, obviamente, comprometendo o orçamento pessoal", alerta o consultor.
Necessidade de pertencimento
Heloísa afirma ter sentido bem essa "pressão social" destacada por Alison. Para ela, o consumo de cosméticos dos quais não precisava era até mesmo uma forma se se sentir inserida em algo. Se todo mundo tem, por que não?
"Quando o blush da Rare Beauty viralizou, eu via muitos vídeos de blogueiras indicando várias cores: 'Ah essa cor dá para fazer isso, essa de outro jeito'. Aí a gente compra e depois se pergunta o porquê. Às vezes aquelas cores nem ficam boas no nosso rosto", ressalta. O produto em questão custa R$ 169 por unidade, em 7,5ml.
Outro pensamento que induzia Heloísa à compra era o de escassez.
"Eu pensava: 'Nossa, eu preciso comprar esse produto porque ele vai esgotar e eu vou ficar sem'", lembra.
Para Alison, esse sentimento é um indício de que o usuário das redes sociais está caindo na armadilha do consumo excessivo.
"Essa sensação de necessidade constante de comprar sempre o último lançamento, a compulsividade excessiva de compras, essa comparação que fica latente entre influenciadores e amigos que tem nas redes sociais... A gente pensa 'poxa, aquele influenciador tem, meu amigo tem, porque eu não posso ter?'. E depois vêm a culpa ou arrependimento quando você conclui a compra e vê que de fato não precisava daquilo", analisa.
"O risco maior é o endividamento. O consumo excessivo desses produtos pode levar você a usar crédito e ter aquela dívida crescente. Outro problema é a redução de poupança. Quando você compra compulsivamente, acaba deixando de fazer aquela reserva, de economizar. Uma terceira questão é o comprometimento do seu orçamento", explica.
Foi exatamente o que aconteceu com Heloísa. Ela conta que passou muito aperto financeiro e precisou recorrer à mãe para pagar as contas. A estudante só conseguiu sair desse 'buraco' quando buscou ajuda psicológica. "Hoje em dia, é um alívio conseguir ter uma organização financeira", desabafa.
Segundo Alison, esse sentimento de alívio relatado por ela é justamente por ter se livrado do "estresse financeiro".
"É a preocupação constante com dívida. Com a incapacidade de pagar as contas, vem uma série de coisas, como conseguir de empréstimo a parente, agiotas, negociação de rescisão contratual com algumas empresas...", argumenta.
'Se a blogueira pode, eu também posso?'
Para tentar dar um sentido ao amontoado de produtos que tinha acumulado em casa, Heloísa passou a criar conteúdo para o TikTok. Com quase 100 mil seguidores e mais de 3 milhões de curtidas só na rede social, ela indica produtos de beleza, sempre alertando os usuários para os perigos do consumo excessivo.
Até pela nova profissão, a relação da estudante de design com o dinheiro gasto em produtos de beleza mudou. "Hoje em dia eu ganho bastante coisa [das marcas], então acabo não gastando dinheiro com isso. Mas quando vou gravar um vídeo sempre tomo muito cuidado com o que eu vou falar", afirma.
"Às vezes eu faço uma publicidade para alguma marca de cabelo, por exemplo. Tenho que mostrar o produto porque é uma publicidade, mas ao mesmo tempo penso em não incentivar o excesso. Tento sempre deixar claro: 'Olha, se você já tem uma máscara de hidratação, não precisa comprar essa. Espera a sua acabar e você compra'", explica.
Para ela, é importante que as pessoas consigam distinguir o consumo excessivo de um usuário comum de rede social com as influenciadoras que têm muitos produtos porque é o trabalho delas.
"É importante saber que você não precisa ter 80 perfumes, porque você não trabalha com isso, não indica esses perfumes para alguém. Até para mim mesmo, que indico, muitos eu não consigo usar e repasso", argumenta. "É saber se colocar no lugar de consumidor", complementa.
Se para Heloísa o vício do consumo pode ser equiparado ao do álcool, Alison acredita que a publicidade de produtos poderia vir com o mesmo aviso de "use com moderação".
"É ético e responsável que tanto marcas quanto influenciadores alertem sempre os seus seguidores sobre o risco de consumo excessivo, a importância da saúde financeira, transparência sobre o impacto financeiro que você vai ter nas compras e dicas para um consumo mais consciente", analisa.
Dicas para sair da dívida 'pós-TikTok'
A terapia serviu como um 'divisor de águas' na vida de consumo de Heloísa. Com uma dica simples, a psicóloga a fez perceber que não desejava realmente tudo o que via, mas tinha o impulso da compra por ansiedade.
"Se você quer comprar uma roupa, deixa para lá no seu 'carrinho' [virtual]. Deixa lá um, dois, três dias, uma semana. Se passar três semanas e você ainda quiser comprar a roupa, aí compra. Na maioria das vezes, você chega na terceira semana e pensa 'Nossa, nem precisava disso' e não vai querer comprar mais", detalha.
O consultor financeiro também aposta na criação de listas de desejo e na filtragem de conteúdo nas redes sociais como dica para reduzir o consumo. É importante aproveitar que trends como o Project Pan e o undercosumption core estão em alta para rever que tipo de conteúdo consumir e o que, de fato, acrescenta. "Siga influenciadores que promovam também esse consumo responsável e evite compras compulsivas", indica Alison.
"Acho muito legal que as influenciadoras entraram nessa trend e eu também. É uma sensação muito boa, quando você acaba com o produto, sabe?", diz a estudante, que fez o desafio do Project Pan.
"Para mim, o consumismo vai sair de moda. O consumo em excesso virou uma tendência no Tik Tok e, assim como todas as tendências do Tik Tok, elas acabam", opinou Heloísa.
Para os que se veem em uma realidade apertada por conta de gastos influenciados pelas redes sociais, Alison listou dicas importantes:
- Revise seu orçamento, analise os seus gastos mensais e identifique onde é possível economizar;
- Estabeleça metas para pagar suas dívidas e também para economizar;
- Venda produtos que não são utilizados. Comprou aquele item que você não está usando, está em bom estado? Coloque para vender! Negocie com um amigo ou com alguém e pega o dinheiro desse produto, desde que esteja em bom estado de conservação;
- Busque um especialista. Assim como a gente tem influenciadores que estão vendendo produtos e incentivando consumo a gente também tem influenciadores que tem trazem a consciência financeira de você economizar de você ter um bom direcionamento dos seus recursos;
- Siga influenciadores que falam em consumo consciente e não estimule o acúmulo;
- Faça lista de desejos. É importante anotar todos os produtos que tem interesse e fazer uma programação de compra;
- Bloqueie, ainda que temporariamente, os anúncios que vêm sempre para induzir você ao consumo.