Priscila Santos Araújo saiu da informalidade em 2022, quando deixou de vender balas em semáforos de São Paulo.
Desde então, a paulistana de 30 anos conseguiu quatro empregos com carteira assinada — em todos, segundo ela, enfrentou condições precárias.
Com a retomada da economia no pós-pandemia, Priscila, que mora na Zona Norte da cidade, conseguiu trabalho em uma rede de fast food e em uma farmácia, antes de migrar para o telemarketing.
Mas a rotina de jornadas exaustivas e acúmulo de funções a levou a sair desses empregos e buscar alternativas que oferecessem melhores condições de trabalho.
"Não somos subumanos, não queremos subempregos. Queremos ter vida", diz Priscila.
Priscila é uma das milhares de pessoas que têm dado voz a uma insatisfação de muitos brasileiros com as condições que encontram no mercado de trabalho.
Um mercado que tem exibido números impressionantes, que fizeram o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) comemorar no último domingo.
"Estou convencido de que estamos vivendo hoje o melhor momento da geração de emprego nesse país. Estamos com 6,4% de desemprego, que é um padrão extraordinário", disse em entrevista ao programa Podk Liberados, da RedeTV.
A taxa registrada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no terceiro trimestre deste ano é o menor patamar da série histórica, iniciada em 2012.
O setor de serviços, no qual Priscila trabalha, foi o principal responsável por isso.
Foi líder na geração de postos de trabalho e empregou mais de 1 milhão de pessoas nos últimos 12 meses, segundo dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), divulgados pelo Ministério do Trabalho e Emprego.
Os setores de comércio (344 mil vagas), indústria (299 mil) e construção (145 mil) também tiveram saldos positivos.
Mas a geração de emprego recorde esconde, segundo especialistas, problemas como altos índices de informalidade e subutilização da força de trabalho, segundo economistas ouvidos pela BBC News Brasil.
Ao mesmo tempo, trabalhadores como Priscila e tantos outros têm reclamado de condições que consideram abusivas, como salários baixos e jornadas exaustivas, e têm tentado mudar isso.
"Se estão celebrando termos tanto emprego no Brasil, precisamos nos perguntar, primeiro, o que estão chamando de emprego", diz Priscila.
Ela é hoje uma das coordenadoras do Movimento Vida Além do Trabalho (VAT), que está à frente da mobilização que culminou na apresentação no Congresso de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para reduzir a jornada de trabalho para 36 horas semanais.
Priscila conheceu o grupo há um ano, quando uma amiga compartilhou com ela um vídeo do TikTok em que um trabalhador carioca desabafava sobre a escala 6×1 — a jornada de seis dias de trabalho para um de descanso.
Era Rick Azevedo, criador do VAT, ele próprio um ex-balconista de farmácia como Priscila.
"Eu estava em um momento de depressão com meu trabalho e achava que só eu me sentia assim. Parecia que ele estava falando comigo, me senti acolhida", diz Priscila, que começou a participar dos grupos de WhatsApp e Telegram do movimento.
Nas últimas eleições, o fundador do VAT deu uma demonstração da força e do apoio ao se movimento ao se eleger como o vereador mais votado do PSOL no Rio com a pauta da redução da jornada de trabalho.
Outra demonstração veio com as mais de 2,5 milhões de assinaturas que um abaixo-assinado em apoio à redução da jornada de trabalho recebeu.
Não foi à toa, defende Priscila: "As pessoas estão exaustas".
A mobilização também conseguiu o apoio da líder do PSOL na Câmara dos Deputados, Érika Hilton (SP), que enviou à Câmara dos Deputados a PEC para diminuir a jornada de trabalho.
Nesta semana, a proposta ganhou apoio popular nas redes sociais, com pressão para que parlamentares apoiassem o projeto.
Na manhã desta quarta-feira (14/11), texto conseguiu o apoio de 194 parlamentares, da esquerda à direita, do PT ao PL, divulgou Hilton. Para a PEC começar a tramitar, é necessário o apoio de ao menos 171 dos 513 deputados.
O governo federal tem demonstrado cautela em relação à proposta.
Na segunda-feira (11/11), o ministro do Trabalho e Emprego, Luiz Marinho (PT), afirmou que o fim da escala de trabalho 6x1 deve ser negociado em "convenção e acordos coletivos entre empresas e empregados".
O ministro defendeu, em nota, que assunto deve passar por "discussão aprofundada e detalhada".
A reação foi criticada por defensores do fim da escala 6x1 — que pedem apoio direto do governo Lula à causa.
Com o crescimento do debate, o vice-presidente, Geraldo Alckmin, afirmou na terça-feira (12/11) que a redução da jornada é uma "tendência mundial", mas que cabe à sociedade e ao Congresso fazer essa discussão.
A proposta enfrenta a resistência de associações de empresas, que defendem que as leis trabalhistas que existem hoje são suficientes para garantir condições de trabalho dignas.
Os representantes dos empresários também dizem que reduzir a jornada de trabalho é economicamente inviável para a maioria dos negócios, que são de pequeno porte.
"Muitas pessoas vão ter que deixar de contratar, desligar funcionários ou mesmo ir à falência, porque muitos pequenos empresários hoje vivem do crédito", diz o empresário Luis Bigonha, presidente do Conselho de Serviços da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (Fecomércio) de São Paulo.
O real problema do mercado hoje, dizem empresários ouvidos pela reportagem, é achar trabalhadores qualificados para preencher as vagas disponíveis, porque muitos preferem trabalhar por conta própria.
Baixos salários e rotina de abusos
Um dos problemas que o menor desemprego em uma década ofusca é o baixo valor dos salários.
Em setembro passado, mês com o dado mais recente divulgado pelo Caged, o valor médio pago a trabalhadores admitidos em novos empregos no Brasil foi de R$ 2.158,96.
Isso representa uma redução de 4% em quatro anos, já descontada a inflação do período.
Ou seja, quem é contratado hoje ganha na média menos do que quem foi contratado em 2020.
Em seus últimos empregos, Priscila ganhou menos do que essa média.
Na rede de fast food, ela recebia um salário mínimo para trabalhar do turno da madrugada. Em contrapartida, relata uma rotina de humilhações e assédio moral.
"A gestora não permitia que a gente usasse roupas que não fosse uniforme. Muitas vezes fazia frio de madrugada, e os trabalhadores não podiam vestir um casaco. Só havia uma blusa de frio com a logo da empresa para todos os funcionários, que tinham que dividir a blusa", relata.
"Se você ficava doente ou fora por algum motivo, havia castigos. Por exemplo, se você estivesse com atestado médico em um dia, no outro iriam te dar as piores tarefas, como lavar a calçada às 3h da manhã, em um frio de dez graus."
Depois desta experiência, Priscila conta que foi contratada em uma rede de farmácias — onde ganhou o maior salário dos últimos anos, R$ 1,6 mil e R$ 100 de auxílio-refeição por mês.
Como atendente, trabalhava em jornada 6x1 e com acúmulo de funções.
"Na loja, o atendente tinha que orientar o cliente, mesmo sem treinamento ou formação na área, era o caixa, estocador. Até entregas em um raio de 2 km precisávamos fazer."
A questão é que muitos trabalhadores não conseguem escapar de empregos ruins, explica o economista Marcelo Manzano, professor de Economia Social e do Trabalho do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
"Enquanto em países de economia avançada as pessoas podem escolher se vão trabalhar em um determinado lugar ou não, aqui, a situação é muito diferente", diz Manzano.
"Muitos trabalhadores não têm o 'luxo' de escolher empregos que se adequem às suas qualificações e necessidades profissionais nem podem esperar por um emprego de qualidade, porque não temos um sistema de proteção social robusto como o da Alemanha ou França."
O economista destaca a reforma trabalhista, que flexibilizou certas atividades como o trabalho intermitente, "plataformização" do trabalho e crises econômicas trouxeram impacto negativo sobre a qualidade das ocupações — em um mercado estruturalmente marcado pela informalidade.
"Há uma deterioração na qualidade dos postos de trabalho em comparação ao auge do mercado, que ocorreu em 2013 e 2014, durante o governo Dilma", avalia Manzano.
Além da informalidade, a subutilização da força de trabalho é outro problema que os economistas apontam.
Esse índice abrange pessoas que, apesar de empregadas, gostariam de trabalhar mais horas ou em posições mais qualificadas.
Hoje, a taxa de subutilização está em 16,5%, percentual que já chegou a 30% durante a pandemia.
"Esse índice capta a realidade de trabalhadores subempregados e em empregos precários. Embora também tenha caído, com a taxa de desemprego, permanece alta", pontua Manzano.
A boa notícia, segundo o economista, é que em 2024 o segmento da indústria também teve um saldo positivo na geração de empregos.
"Neste ano, a indústria de transformação gerou o maior número de postos adicionais de trabalho, um indicador muito positivo, especialmente porque essa indústria é crucial para impulsionar o PIB e criar empregos de qualidade", afirma.
Manzano nota que, dentro deste setor, subgrupos como produção de bens de capital e bens duráveis — setores que incluem a fabricação de máquinas e veículos — também apresentaram crescimento expressivo de empregos.
Além da indústria, o setor de serviços qualificados, que abrange áreas de informação, comunicação e finanças, também registrou avanços.
"Esses setores, que geralmente oferecem empregos com melhores salários e condições", observa o economista.
Ainda assim, Manzano é cauteloso em relação a essa melhora.
"Ainda há um enorme contingente de pessoas que se veem obrigadas a se virar em empregos precários, sem poder esperar por uma oportunidade de qualidade."
O economista Antonio Lacerda, professor da pós-graduação em economia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), afirma que o crescimento da economia brasileira acima das expectativas em 2023, com PIB aumentando em 2,9%, e boas projeções para 2024 impulsionaram a criação de empregos.
No entanto, ele destaca que, em momentos de recuperação econômica, é comum que os empregos de menor qualificação e renda sejam os primeiros a crescer.
"Ao sair de uma crise, é natural que os empregos que cresçam mais sejam os menos qualificados, de menor renda. Esse é um fenômeno que está se repetindo agora na saída da pós-pandemia", afirma.
Segundo ele, o desafio agora é melhorar a qualidade desses empregos, o que dependeria, na sua visão, de políticas que incentivem setores como a indústria e a construção civil.
Para o economista, o mercado de trabalho está em transição, com o crescimento de empregos em plataformas digitais e do empreendedorismo.
Segundo o Sebrae, há 11,5 milhões de microempreendedores individuais (MEI) com registros ativos no Brasil, mais de 90% estão em atividade. Em 2022, esse percentual era de 77%.
"Agora, o empreendedorismo e a 'plataformização' influenciam muito mais do que o emprego tradicional com carteira assinada", comenta.
Para Priscila Araújo, do VAT, o aumento de trabalhos informais, como microempreendedor ou via plataformas reflete o descontentamento com as condições de trabalho e a busca por maior qualidade de vida.
"Esse discurso de 'seja seu próprio chefe, que você vai fazer o seu horário' cresceu porque, na verdade, as pessoas querem trabalhar menos, viajar, ter qualidade de vida. E quem elas veem realizando isso hoje? O patrão", reflete.
"Para isso, eles dão uma resposta simples: seja você o chefe. Mas, no fundo, o problema das pessoas é carga horária, o salário. As pessoas não querem só sobreviver, querem desfrutar, ter seu carro, andar bonitas. Elas querem viver."
Para empresários, falta mão de obra qualificada
Se de um lado os trabalhadores questionam a qualidade dos trabalhos neste recorde de empregos, por outro o empresariado afirma encontrar dificuldade para contratar mão de obra qualificada e suprir a alta demanda.
Segundo uma pesquisa do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV Ibre), 29,4% dos empresários da construção civil apontaram a escassez de mão de obra qualificada como fator que limita o desenvolvimento de negócios. Este é o patamar mais alto desde o fim de 2014.
Em 2024, o setor da construção civil foi o segmento da economia que teve o maior aumento de contratações, comparado ao ano anterior.
Foram mais de 231 mil novas oportunidades na área entre janeiro e setembro, crescimento de 8,4%.
Mas a falta de profissionais qualificados tem afetado o cronograma de obras, diz o empresário Yorki Estefan, diretor de engenharia na Conx Construtora e Incorporadora e presidente do Sindicato da Indústria da Construção Civil do Estado de São Paulo (SindusCon-SP).
"Não chega a ter obras paradas, mas, às vezes, a execução de uma obra é dilatada pela falta de profissionais", afirma Estefan.
"Até as empresas de elevadores, por exemplo, têm dificuldades para encontrar trabalhadores qualificados para instalação."
Na construção civil, diz o empresário, isso levou a aumento de salários e iniciativas por qualificação de trabalhadores. "Estamos promovendo treinamentos para engenheiros e estagiários de obras para fortalecer a base do setor", explica.
A escassez, diz ele, tem como causa principal a informalidade.
"Apenas 26% dos trabalhadores do setor têm carteira assinada; o restante atua de forma independente e informal", pontua Estefan, que afirma muitos optam pela informalidade para evitar burocracia.
"Os mais jovens têm pouquíssimo interesse nessa configuração trabalhista, que vai fazendo uma poupança forçada para ele. Eles preferem receber como um micro empresário. Eles não têm essa preocupação com o futuro, mas sim em receber o máximo de valor possível no presente."
O setor de serviços, que alavancou o crescimento, também sentiu esse impacto do aquecimento.
"Se não fosse o Senac, que forma 44 mil trabalhadores em São Paulo para o setor hoteleiro, bares, restaurantes para a beleza, esses setores já estariam em colapso", afirma Bigonha, da Fecomércio-SP.
Com relação ao movimento pela redução da jornada 6x1, o empresário diz acreditar que a proposta seja inviável para todos os segmentos econômicos.
"Existem setores que, com a tecnologia, pode se dar ao luxo de desenvolver uma condição de horários diferenciados, mas para outros, vai ser impossível", defende.
"Isso vai gerar, a princípio, um conflito grande com o empresariado."
Na mesma linha, a Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel) entende que PEC apresentada por Erika Hilton traria impactos negativos para consumidores e empreendedores do setor de alimentação.
Paulo Solmucci, presidente da entidade, chamou a proposta de "estapafúrdia" e disse que ela não reflete a realidade. A associação diz que cerca de 95% do setor é de microempresas e estima que a medida poderia encarecer em até 15% nos preços dos cardápios.
"As regulamentações estabelecidas pela Constituição e expressas na CLT são modernas e já trazem as ferramentas para garantir condições de trabalho dignas e justas aos colaboradores. A legislação atual permite que os trabalhadores escolham regimes de jornada adequados ao seu perfil", afirmou Solmucci.
Sergio Mena Barreto, CEO da Associação Brasileira de Redes de Farmácias e Drogarias (Abrafarma), também se posiciona contra a proposta.
Ele afirma que, no varejo, o custo com pessoal representa um dos principais custos operacionais, especialmente em farmácias.
Com relação ao "acúmulo de função" no setor, Mena afirma que o varejo é a primeira porta de emprego para muitos jovens e que esta é uma característica global do setor.
"As farmácias, para muitos, representam o primeiro emprego e um ambiente de aprendizado. Como no conceito do McDonald's, os funcionários começam nas posições iniciais, como atendimento e caixa, e, com o tempo, ganham especialização", diz.
"Quando a pessoa é contratada, ela já sabe vai ser um profissional que cobre várias áreas, mas dentro de um limite físico."
Sobre a PEC da redução da jornada que deve começar a tramitar no Congresso, ele afirma que a proposta é "populista" e espera que todos os setores da sociedade sejam ouvidos em audiências públicas.
"Temos que considerar os aspectos econômicos também. Podemos achar que temos uma grande solução do ponto de vista das pessoas, mas ela tem que ser boa para as empresas também."