Ambos se autodenominam governos socialistas. Mas se no espectro político Bolívia e Venezuela se aproximam, suas diferenças são gritantes no campo econômico.
Nos quase 14 anos de governo de Evo Morales, a Bolívia cresceu em média 4,8% ao ano, com a inflação projetada pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) de 2% para este ano. Também cortou pela metade a pobreza, para 17%.
Já a Venezuela de Nicolás Maduro, com suas políticas econômicas fundamentalmente herdadas de Hugo Chávez, destruiu metade de sua economia em seis anos.
Ali, o cotidiano se parece ao de uma guerra: há escassez de mercadorias e medicamentos.
A derrocada econômica do país se tornou uma crise humanitária: mais de 4 milhões de pessoas fugiram, muitas delas para o Brasil.
Mas se ambos os governos se dizem socialistas, como é possível que suas economias tenham resultados tão diferentes?
'Evonomics'
Para responder a essa pergunta, é preciso voltar no tempo e entender o sucesso das políticas de Morales. Também não se pode esquecer do trauma dos bolivianos com a hiperinflação dos anos 80, história semelhante à do Brasil.
Quando chegou ao governo em 2006, em um momento de profunda revolta política, a esquerda boliviana se manteve consciente de que sua permanência dependeria da estabilidade macroeconômica.
A equipe econômica do ministro Luis Arce Catacora idealizou um modelo misto baseado em dois pilares.
O primeiro e mais importante é o setor estatal. Em 2006, Morales nacionalizou por decreto o petróleo e o gás, além da energia elétrica. Esses ativos estratégicos geram dividendos que são, então, destinados a políticas sociais.
A outra parte é o setor privado, que inclui o agronegócio em Santa Cruz (leste do país) e o setor informal: artesãos e pequenos comércios empregam mais de 60% da força de trabalho.
Com a nacionalização dos hidrocarbonetos, o dinheiro que antes se destinava aos cofres das multinacionais permaneceu dentro do país e se multiplicou, bem como aumentou o poder do Estado que o redistribui.
"Isso tem gerado um mercado interno muito maior, possibilitando, por exemplo, que setores como o de construção e entretenimento tenham se tornado muito mais rentáveis", explica o jornalista boliviano Fernando Molina à BBC News Mundo, o serviço de notícias em espanhol da BBC.
"E a outra consequência é que o setor informal, que não deixou de ser pobre, melhorou a atividade, cria mais emprego."
É precisamente esse segundo pilar, o setor privado que gera emprego, que falta à Venezuela, um país cuja crise é tão profunda que milhões de pessoas tiveram que fugir.
Os que tinham mais dinheiro foram para a Espanha ou para Miami. Os que não, saíram a pé, atravessando as fronteiras, como a do Brasil.
E, algo impensável há dez anos, também houve venezuelanos que emigraram para a Bolívia.
Nos últimos meses, muitos bolivianos ficaram surpresos com a chegada de migrantes venezuelanos.
Vários deles trabalham como garçons ou vendedores ambulantes.
Eles também fazem malabarismos em troca de moedas nas principais ruas de La Paz.
Como na Colômbia, Chile ou Peru, mulheres venezuelanas são vistas carregando crianças pequenas pedindo dinheiro, enquanto outras seguram cartazes com as cores da bandeira venezuelana.
Nacionalizações diferentes
Mas, ao contrário da Venezuela, as nacionalizações bolivianas foram limitadas a setores estratégicos.
Essa ideia estabelece uma fronteira clara entre o modelo misto boliviano e o expansionismo estatal imposto por Chávez na Venezuela e aprofundado por Maduro.
Já na Venezuela, a nacionalização teve relação estreita com o Caracazo, a onda de violência desencadeada por um pacote de ajuste neoliberal em 1989.
Assim, com o preço do petróleo nas nuvens, Chávez chegou a ordenar a desapropriação das instalações ao redor da praça Bolívar, no centro de Caracas, ao vivo durante o "Olá, Presidente", seu programa de televisão.
"E este edifício?", pergunta Chávez enquanto aponta para o prédio. "Trata-se de um edifício com comércio privado de jóias", responde o então prefeito de Caracas, Jorge Rodríguez, atual ministro das Comunicações.
"Exproprie", diz o presidente enquanto fala sobre transformar a área em um "centro histórico".
O advogado Carlos García Soto, coautor do livro "Exproprie: a Política Expropriadora do 'Socialismo do Século XXI'", descreve as expropriações de Chávez como "uma política desordenada".
"Não foi o produto de um plano estratégico para a nacionalização de setores econômicos", diz García Soto à BBC News Mundo.
Não surpreende que, em muitos casos, expropriações tenham ocorrido devido a circunstâncias de natureza social ou retaliação política.
Por exemplo, em julho de 2015, na primeira desapropriação ordenada por Maduro, algumas terras foram confiscadas para beneficiar as famílias que foram assentadas ali.
Em 2017, o presidente do Instituto Nacional de Terras (INTI), Carlos Albornoz, denunciou o confisco de uma fazenda cujos donos participaram de protestos da oposição.
O governo também desapropriou empresas de construção devido a conflitos com incorporadoras e, mais recentemente, as posses da multinacional americana Kellogg no país.
Controle do câmbio e outros pecados capitais da Venezuela
Mas esse expansionismo estatal, por si só, não é a única explicação para o desaparecimento da iniciativa privada na Venezuela.
Os controles de câmbio e preços é outro "pecado capital" que os críticos atribuem aos governantes da economia venezuelana.
Estabelecidos por Chávez em face das greves gerais e paralisações de 2002 e 2003, logo se tornaram um obstáculo ao desenvolvimento econômico e uma fonte de corrupção.
Funcionou assim: para conter a inflação, o governo tabelou certas mercadorias, que logo desapareceram das lojas.
O que se concebeu como uma medida para proteger os consumidores contra os excessos de "empreendedores gananciosos", por causa da hiperinflação, logo causou prejuízos.
Afinal de contas, se o preço imposto pelo Estado é menor que o custo de produção da mercadoria, não há interesse comercial em produzi-la.
O resultado, como se sabe, foi a falta de produtos nos supermercados.
Por outro lado, o controle cambial, pelo qual o Estado monopoliza o acesso à moeda estrangeira , também se tornou uma fonte de escassez e corrupção.
Caso simbólico ocorreu com o papel higiênico. Para produzi-lo na Venezuela, é necessário importar a cola usada para grudar as folhas de papel ao tubo de papelão e não há acesso a dólares, assim, o produto não se torna economicamente viável.
Além disso, foi criado o incentivo perfeito para o surgimento de um mercado negro (o dólar paralelo) devido às crescentes restrições ao acesso a moedas estrangeiras, à medida que o preço do petróleo estava caindo.
"O governo decide vender os dólares abaixo do mercado com a ideia de garantir que os preços permaneçam baixos. O que aconteceu? Um grande incentivo para os detentores de dólares vendê-los no mercado paralelo", afirma à BBC News Mundo Luis Vicente León, presidente do instituto de pesquisa Datanálisis.
Nesse contexto, segundo León, o governo decide quem se torna um milionário e quem está arruinado, e é isso que destrói a economia.
"A discricionariedade na formação dos preços corrompe tudo. Tudo termina na mesma coisa, uma cascata de corrupção que destrói a capacidade econômica do país", diz Leon.
Guerra econômica
Outra diferença é que, enquanto na Bolívia o governo lutava para "desdolarizar" a economia e construir a confiança do consumidor em sua moeda, na Venezuela, a solução dos problemas de fluxo de caixa passou pela impressão de mais dinheiro.
O dinheiro em circulação na Venezuela passou de 127 bilhões de bolívares no final de 2017 para 8 trilhões atualmente.
E isso em um contexto de contração econômica.
Essa impressão de moeda sem respaldo na economia real, dinheiro "inorgânico", afundou o valor do bolívar, tornando-se combustível para a inflação.
Apesar disso, o governo venezuelano nunca reconheceu seus erros e alega que a hiperinflação que o país sofre é "induzida e criminosa".
De fato, o governo venezuelano tem uma explicação para todos os problemas do país: uma "guerra econômica".
Desde que chegou ao poder após a morte de Chávez em 2013, Maduro diz que a Venezuela é vítima de uma "guerra econômica" e sabotagem orquestrada por empresários de direita em conluio com os EUA.
Mais recentemente, culpou as sanções decretadas pelo governo do presidente americano, Donald Trump, contra funcionários do alto escalão do seu governo e contra o setor de petróleo.
"É claro que não é verdade que a crise é culpa das sanções. A crise é culpa do modelo produtivo", diz Leon. Ele reconhece, no entanto, que "as sanções são impossíveis de afetar apenas o governo".
"A sanção amplia o problema, algo que é visto como um sacrifício que deve ser feito para tentar tirar Maduro do poder", diz o analista.
O problema para Washington e os setores da oposição que apoiam as sanções surge, como Leon destaca, quando elas não são suficientes para remover o governante venezuelano. A mesma estratégia, acrescenta ele, não deu certo "nem em Cuba, nem no Irã, nem na Síria, nem no Zimbábue...".
"Então você amplia o processo de deterioração interna e destrói a infraestrutura, a produção, a capacidade da indústria... E o mais afetado é o povo."
Em contrapartida, o "socialismo boliviano" nacionalizou os setores estratégicos principalmente com o objetivo de renegociar contratos com empresas internacionais de petróleo para, então, aumentar os royalties detidos pelo Estado.
Essa renegociação proporcionou enormes somas ao governo, que possibilitaram uma política de redistribuição de riqueza de olho em três setores da sociedade: os idosos, as crianças em idade escolar e as gestantes.
De fato, com essa decisão de limitar as nacionalizações a setores estratégicos, também explica como, ao contrário da Venezuela, o governo de Morales operava para garantir o suprimento interno de alimentos.
E, além da agricultura de subsistência que pode ser encontrada em todo o país, a sede do setor de agronegócios fica em Santa Cruz de la Sierra, berço dos movimentos de oposição a Morales.
O agronegócio é o segundo item na pauta de exportação da Bolívia, em torno de 10%, mas o setor está crescendo a uma taxa superior a 8%, portanto sua contribuição para o PIB está aumentando.
Coexistência pacífica
Durante os primeiros e turbulentos anos do presidente Morales no poder, o setor do agronegócio aliou-se à oposição e suas aspirações autonomistas e até separatistas.
O governo decretou o controle das exportações de alimentos e exigiu um "certificado de suprimento interno" para garantir a disponibilidade de produtos no mercado doméstico.
Mas, ao contrário do amargo confronto entre governo e empresários que ocorreu na Venezuela, em 2011, Morales conseguiu costurar uma coexistência pacífica com os chefões do agronegócio.
"Eles perceberam que a opção pelo confronto com a oposição representaria sua derrocada, então começaram a cooperar com o governo", lembra Molina.
O analista ressalta que o governo "também fez uma concessão" ao substituir o discurso contra os transgênicos por outro "de desenvolvimento agrícola".
"Com esse acordo, se resolveu o problema de alimentos e produtos básicos", diz Molina.
Problemas à vista
Mas nem tudo são boas notícias na economia da Bolívia.
De fato, existem motivos de preocupação.
A prometida industrialização dos recursos naturais não ocorreu durante os anos do boom do petróleo e os críticos acusam o governo de aprofundar o modelo rentista extrativista.
Molina fala de sinais de uma "doença holandesa" que, embora não tenha chegado ao ponto de destruir a economia, impediu a diversificação e a industrialização, tornando-a fortemente dependente da exportação de recursos naturais.
Além disso, a situação mudou radicalmente em 2014 com a queda nos preços dos hidrocarbonetos.
A Bolívia começou a registrar déficit fiscal, ou seja, passou a gastar mais do que arrecada. Ao mesmo tempo, há um déficit comercial, importando mais do que exporta.
Ambos os déficits, de cerca de 6 e 8%, não levaram o governo a fazer nenhum tipo de ajuste e foram pagos com dinheiro das reservas internacionais, aumentando a dívida externa.
E embora a dívida externa (cerca de 25% do PIB) e as reservas internacionais (20% do PIB) permaneçam em números que podem ser considerados saudáveis, o mesmo não se pode dizer do ritmo com o qual elas se deterioram.
Em cinco anos, as reservas internacionais caíram de 50% do PIB para 20%.
Muitos veem inevitavelmente uma desvalorização futura do boliviano, a moeda da Bolívia, mas isso se refletirá na inflação e não parece ser uma receita mágica que servirá para corrigir a situação.
"No caso boliviano, considerando que 70-80% das exportações são minerais e hidrocarbonetos, dificilmente uma desvalorização levaria ao aumento das exportações", diz José Pérez-Cajías, historiador da economia boliviana da Universidade de Barcelona, na Espanha.
Isso porque o preço dessas matérias-primas é determinado internacionalmente.
O vice-presidente, Álvaro García Linera, diz que a chave para deixar o atoleiro é diversificar as exportações com a industrialização do lítio, a "economia do conhecimento" e até o turismo.
E isso é algo que os governantes da Bolívia e Venezuela têm em comum: mais de uma década falando sobre diversificar a economia sem que isso realmente aconteça.